“Pompéu” – Pintura Wagner Bottaro
Uma colega de trabalho me contou que quando uma moça negra, hoje jornalista global famosa, começou a despontar nas telas do MG-TV, certo dia, sua avó, que a reconheceu como filha de sua antiga lavadeira, exclamou: “é por isso que a gente não acha mais empregada!” Os tempos são outros.
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À noite, quando os vizinhos dormem, eu, já mergulhado nos lençóis, viajo para minha cidadezinha de Pompéu, lá pelos idos de 1946,1947. Caminho pelas ruas de terra, as do centro já apisoadas de cascalho onde a chuva escorria para a periferia pelos lados do córrego Mato Grosso ou do Morro Doce.
Chegando em Pompéu, tudo passa como numa fita de cinema 3D technicolor HD, eu vou de um canto a outro da minha pequena e pacata, nem tanto!, cidade do interior.
Encontro pelas ruas pessoas simples e reconhecidas, tipos folclóricos ou bêbados anônimos, todos têm sempre um cumprimento amável, sinto uma admiração sincera de sua parte.
A cada dia eu visito pessoas diferentes. Outro dia eu encontrei as empregadas domésticas que transitavam, independente dos tempos de suas vidas, embaralhando em minha mente os dias e anos de todos os tempos.
No majestoso alpendre do Tio Xisto, que gastava todo o seu dinheiro com a UDN, encontro a Fiúca, prima dos meus primos por parte de mãe, a tia Chica, paralítica na cama, era irmã do Pai da Fiúca de quem eu nunca soube o nome de batismo. Subindo para o sobrado do João Manoel, fazendeiro rico e viúvo que apreciava as moças novas, vi a Cleuza, menininha encantadora que pegou para criar, fazia de tudo para suas filhas, a Ninica, a Belinha e mais uma irmã que não me lembro mas sei que se casou com o forasteiro Roque. De quintal vizinho vem a Maria, empregada da Nair do Janjão, que tinha a pele mais negra que a asa da graúna, naquele tempo eu já havia lido Iracema, de José de Alencar.
Na casa do meu primo Lili do Xisto, além da prima Iva que era babá dos priminhos e priminhas sempre havia uma empregada – Claudina, Rosa ou Cenira – que cozinhava, lavava e passava. Outro primo, Tunico, que ali em frente morava, era a mesma coisa: tinham a Bá, que hoje mora em uma bela chácara e ainda faz um delicioso joelho de porco, só muitos anos mais tarde fiquei sabendo chamar-se Raimunda e tinha uma outra empregada, a Chiquinha, anãzinha, para as lidas mais pesadas.
Minha outra prima, a Izinha, casada com o Ni do Antonio da Palmira criava o Jó, outro anão que tinha uma alma do outro mundo, dava alegrias imensas para a meninada, todos planejavam seu casamento com a Chiquinha. Ele tocava uma sanfona de oito baixos, os temas de suas músicas devem ter vindo da escravidão, alguns tristes “Estô doente, tô com dor de dente, tô impertenente, sei que vou morrer, … o primeiro prato que encontrei na mesa foi da baronesa do palácio azul …”, outros falavam da rotina das escravas “Chiquinha mais a Totonha, Pelonha mais a Fulô, ajuntando vosmicêis vai ao banho com a Leonor, ai, ai!”, mas também temas animados, festivos, dançantes, “quem quiser a sinagoga, vai lá pro cerrado…”. O Jó ludibriava Papai Noel, na véspera do Natal deixava uma botina na casa de cada um dos meus primos e no dia seguinte arrecadava.
Depois da farmácia do Vicente na Rua do Coqueiro havia a pensão da Marieta Afonso, onde reinava silenciosa a preta Angélica que foi “madrinha honorária” de um dos meus irmãos. Ele lhe tomava a bênção e ela o abençoava com muita fé, sem nunca tê-lo levado à pia batismal.
Na Rua Antônio da Palmira, que não tinha esse nome não, ele era apenas o mais ilustre morador, mais tarde é que veio a ser nome oficial daquela via, vejo a linda Neusa, babá na casa do Hipólito, filho do Tomaz, dono da fábrica da melhor manteiga do mundo, penso que ela casou-se com o Pinduca, pelo menos em minha imaginação. Por falar em manteiga, na fazenda da Palmira, que deu nome ao dono, o leite atingia a impressionante marca de cinco por cento de gordura.
Na casa de minhas irmãs, primeiro foi a Iraci, depois a Mariinha, ambas preparavam um almoço divino toda vez que eu chegava de viagem. Bons aqueles tempos, que vida faustosa elas nos proporcionavam!
Na casa de minhas irmãs, ainda havia a lavadeira Bastiana que não conversava nunca com os homens, gênero que ela chamava de macacos, sem nenhuma discriminação de cor. Fico a imaginando numa arquibancada de futebol nesta época do politicamente correto, uma blasfêmia dessas e o campeonato parava.
Na cidade toda, o usual era a lavadeira semanal, ninguém nem sonhava com a Brastemp ou a Electrolux, era no muque, o sabão de pedra era feito de cachorro morto. As lidas da casa eram das mulheres da família, principalmente as moças que iam acumulando as prendas. Sempre havia uma menina pegada para criar que nada mais era do que um disfarce para a mão de obra doméstica.
Falta situar na casa do João Baiano a Mariinha, preta velha, que tratava as três crianças, Rondon, Adonias e Marinalva como se fossem seus. Já na Praça da Igreja, lembro-me apenas da velha Cota, na casa de dona Filinha, mãe do rico José Maria de Carvalho, que tinha quase duzentas casas de aluguel, todas com suas iniciais na fachada: JMC. A dona Cota parecia mais uma irmã da Dona Filinha, quase tão velha quanto a centenária patroa.
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Eu me despeço carinhosamente dessas pessoas maravilhosas e volto para o leito de minha cama já em alfa, aguardando a vigília que traz a aurora.
Comentários
Tião, este artigo que nos remonta áquele Pompéu antigo só poderia ter vindo de voçê.Retrata com exatidão todos o detalhes daquela cidadezinha muito pacata áquela época.E as pessoas?!.. As pessoas citadas eu me lembro e de algumas empregadas poucas também..eu melembro. Não tenho tão boa memória como voçê.Deu saudades da infância e daquela época tão prazeirosa.Um abraço. Grijalva.