Tunico do Xisto

Publicado por Sebastião Verly 24 de março de 2010

Antonio Januário de Campos, o Tunico do Xisto, foi uma pessoa muito especial. Para mim foi um exemplo em tudo. Na vida privada e na pública. Era o filho “do meio” do meu Tio Xisto e tinha mais quatro irmãos: Levi, Ju, Lili e Izinha.

Em minha mente, a lembrança maior do meu primo foi a do dia que meu pai faleceu. Logo depois do sepultamento, numa tarde obscurecida pela neblina e o frio, o meu primo Tunico chega em sua caminhonete International e pára, na rua irregular em que vivíamos. Resumiu tudo em uma frase: “Comadre”, assim ele tratava minha mãe, “a senhora e os meninos nunca passarão falta de nada. Nós vamos ajudar a senhora a criá-los.”

Daí para frente, pude constatar que seu compromisso era de fato para valer. Fez muitos esforços para nos ajudar. Meu contato com ele estreitou-se mais, após o ano de 1953 quando passei a trabalhar no Comércio de Peças para automóveis e materiais de construção de propriedade do Lili, seu irmão.

Era um conselheiro seguro. Registro aqui seu amor à Democracia com D maiúsculo. O país vivia um período de turbulência e o Deputado Carlos Lacerda, da UDN, incendiava o país através de seus brilhantes pronunciamentos. No dia 24 de agosto de 1954 o Presidente Getúlio Vargas deixou a história, num misterioso suicídio. Pompéu, onde eu vivia e trabalhava, era uma cidade de pouco mais de 10 mil habitantes. Para mim, com 12 anos, Getúlio era tudo de ruim. Achei ótimo seu suicídio e desci alegremente para abrir a Loja, já que o patrão estava viajando.

Lição número um: Tunico chamou-me, mandou que eu fechasse as portas porque o Presidente representava muito mais que a pessoa que ocupa o cargo. É o mais alto nível das instituições nacionais, tinha que respeitar! Ficou gravado para sempre na minha memória.

Tunico era o que havia de mais sério na política. Começou cedo. Em 1945, com vinte e poucos anos, ajudou a fundar a UDN, União Democrática Nacional, na cidade. Aqui, um pouco de história: a UDN nasceu ligada à campanha do Brigadeiro Eduardo Gomes à presidência da república em 1946, com a redemocratização, no fim do Estado Novo, e seu lema era humanista: “tornar os ricos menos poderosos e os pobres menos sofredores”. Sua campanha popularizou-se com a forma de arrecadar recursos vendendo doces de chocolate, que a partir daquela época ficaram conhecidos pelo nome de “brigadeiro”. Ele foi derrotado em 1946 por Eurico Gaspar Dutra, do PSD, e depois, em 1950, pelo próprio Getúlio, que concorreu pelo PTB. Voltando a Pompéu, em 1947 Tunico foi prefeito provisório, passando o cargo ao prefeito eleito, José Maria Álvares da Silva, seu adversário do PSD.

Lição numero 2: em 1955, eu e meu irmão aproveitávamos a noite para arrancar cartazes do adversário Juscelino e dos candidatos ao governo de Minas e deputados do PSD, quando surge, não sei de onde na pequena cidade, a figura impoluta do Tunico. Disse-nos com firmeza e carinho: na democracia, todos têm o direito de usar o espaço público para divulgar suas mensagens. A campanha eleitoral clara e honesta merecia respeito de todos nós.

As lições foram se avolumando. Tunico era o que hoje chamam de empreendedor. Conquistou uma parceria com a Empresa Oeste de Transporte e outras de nível mais amplo e fazia todo o transporte de mercadorias da Capital para o comércio de nossa Cidade, e da manteiga produzida em Pompéu, de alta qualidade, que era destinada à exportação. Detinha esse serviço como exclusivo, mas era justo na cobrança do frete.

Levou para a cidade o hábito de adubar a terra. Incentivou os fazendeiros e agricultores a usar adubo, principalmente o Salitre do Chile, que transportava e armazenava, dando a necessária orientação a seus clientes. Eu o ajudava tirando os primeiros pedidos do produto. Não me custava nada. No entanto ele anotou todos os pedidos e ofereceu-me quinhentas ações da Companhia Força e Luz de Pompéu, da qual sempre foi diretor e chegou a ser presidente, dizendo que era para que eu começasse a vida.

A companhia gerava energia elétrica em uma pequena usina no Rio Picão, em Martinho Campos, munípicio vizinho. Através de uma linha de alta tensão a energia chegava a Pompéu onde tinha uma subestação e a rede distribuidora. Os acionistas eram todos da cidade, principalmente comerciantes, e o fornecimento, enquanto o Tunico foi vivo, sempre foi confiável e satisfatório. Com sua saída da cidade a companhia desandou, e, por iniciativa de um deputado articulador do golpe militar na cidade, que depois veio a ser presidente da Cemig, os ativos da companhia local foram assumidos pela estatal por volta de 1974, sem nenhuma compensação a seus acionistas.

Além de administrar uma empresa na forma de Sociedade Anônima ele sempre investiu alguma economia na Bolsa de Valores, sempre esteve a par do valor real e nominal das ações, e isso em 1955/56 era avançado demais.

Veio a agitação política dos anos 60 e lá estava o Tunico a reunir com meia dúzia de pompeanos inteligentes para discutir a situação do País. Na porta dos bares da Rua Dona Joaquina ele dava verdadeiras aulas de economia política. E seu rádio ficava sempre sintonizado na Rádio Mayrink Veiga propagando para toda a praça em frente à sua casa os pronunciamentos de Leonel Brizola.

Ele levou lideranças políticas como José Aparecido de Oliveira à cidade para falar de Reformas de Base, inclusive para esclarecer de uma vez por todas sobre a Reforma Agrária. O primeiro filho chamou-se Francisco Eduardo numa homenagem aos grandes lideres da UDN nacional, Francisco Campos e Eduardo Gomes. Começou a construir a melhor casa daquela época em Pompéu, a cidade que amava. A casa tinha dois andares, com fino acabamento e excelentes instalações, mas teve de mudar-se para a Capital e não chegou a concluí-la.

Para isso tiveram impacto decisivo os desdobramentos do golpe militar de 1964, quando um grupo de reacionários da cidade liderados por um tabelião forasteiro chegou a formar uma comitiva para prendê-lo em sua casa. Ele simplesmente colocou seus dois “Smith & Wesson”, calibre 38, na cintura, um niquelado e outro oxidado, e ficou na varanda de casa esperando. O tal tabelião, líder da tropa de choque, chegou até a esquina, olhou de soslaio, e, vendo o Tunico com seu garbo de cavaleiro intocado, pensou duas vezes e amarelou.

Mas no dia seguinte, quando os reacionários, em sua maior parte fazendeiros, fizeram a carreata do golpe militar soltando foguetes, miraram bem a varanda de sua casa, onde seu filho menor estava nos braços da babá. Sentido-se insultado ele não conseguiu continuar morando na cidade, e se mudou para Belo Horizonte. Os tais fazendeiros, que temiam a reforma agrária de Jango, afirmavam ter 60 metralhadoras “INA”, calibre 45, benzidas por Dom Sigaud, o reacionário arcebispo anti-comunista de Diamantina. Até hoje não se sabe se era blefe, mas ninguém chegou a ver as tais “INAs”.

Tunico era hostilizado pela sua avançada posição política, mas todos o respeitavam como a cabeça pensante e a voz mais esclarecida da sabedoria política na cidade.

Mudou-se para a Capital. Deixou o transporte de mercadorias e ingressou no ramo de hotéis. Tinha um sócio com que tive oportunidade de conversar muitas vezes. Mário só abria a boca para elogiar o meu primo. Eram só elogios espontâneos e sinceros. Tive oportunidade de freqüentar o restaurante “Recanto”, que abriu ao público externo ao Pompéu Hotel, no início da Avenida Amazonas, no centro de BH, e gravou-me na mente uma cena em que um casal exagerava nos toques amorosos e sexuais. Meu primo, em pessoa, como gerente, emitiu a conta e foi até a mesa do casal e, com toda a educação, reserva e firmeza, convidou o casal a se retirar. Foi até aplaudido pelos restantes. E olha que o Tunico era um liberal de quatro costados.

À nossa família ele ajudava de maneira discreta e por meio de trabalho e orientações, e até indicações de meus irmãos para empregos e serviços. Aos parentes mais pobres ele fazia uma espécie de cesta básica com alguns quilos de toucinho, de feijão, de arroz e mantinha esses parentes no mínimo bem alimentados. A última vez que conversei com a Tonha, que era uma prima distante por parte de sua mãe, ela já velhinha lembrou da ajuda de meu primo.

Mas vale lembrar o casamento, a viagem de Lua de Mel e a festa do batizado de meu irmão. O casamento do Tunico foi uma bela cerimônia. O que marcou mesmo foi que saíram da cidade para a lua de mel de avião. Era um homem avançado para seu tempo. Quando voltaram, foram à minha casa batizar o caçula, o que nos dava a maior honra. A esposa Cleuza era uma moça lindíssima. E nós, crianças, eu estava com oito anos, todos queríamos ser fotografados ao lado dela. Creio que essas fotos ainda estarão pela casa de meus familiares.

Senti muito a morte do meu primo. Tenho o orgulho de ter aprendido tantas coisas boas com ele: especialmente o rigoroso senso ético, o respeito ao direito dos outros, o bom humor e a solidariedade humana.

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