Na pacata cidade de Pompéu, no interior de Minas Gerais, havia um homem com um perfil muito especial. Nos meados do século XX, Thomaz de Oliveira Campos, ou simplesmente o Thomaz, uniu-se a sócios escolhidos a dedo e, para fabricar manteiga, fundou uma empresa, a Thomaz Campos & Cia. Ltda. E fabricava uma manteiga especial. Ouvia seus sócios, mas comandava os negócios sozinho. Era um líder que se impunha pela presença, pela sua inteligência e pela sua elevada capacidade de argumentar.
Cabelos grisalhos, rugas na testa, raramente andava a pé. Saia com sua caminhonete pelas ruas da cidade, viajava até uma fazenda alugada e diariamente ia uma ou duas vezes ao sítio, também arrendado, na periferia. Freqüentava o comércio e os ambientes honestos da cidade.
Eu trabalhava em outra firma de materiais de construção de um de seus sócios naquela fábrica, onde ele passava todos os dias e, muitas vezes assentava-se no alto balcão – que eu mantinha super limpo – e ali com uns e outros fregueses conversava um pouquinho.
Eu era um garoto de doze para treze anos, a quem ele só sabia fazer elogios. Elogiava a água que nem filtrada era naquela época, e a bebia, retirada do pote, no copo comum de todos os demais fregueses. Na maioria das vezes, passava para comprar uma pequena peça, um objeto necessário em sua casa, um veda rosca, uma conexão hidráulica.
Gostava de ouvir meus casos. E me perguntava por determinadas pessoas que ali entravam. E agradava-lhe ouvir minha franqueza. Eu sempre soube que era de mau gosto chamar uma pessoa de judeu. Mas via seus amigos mais chegados chamarem-no dessa maneira e um dia ousei também fazer com ele esta brincadeira. Thomaz esboçou um sorriso amarelo e com muito tato e paternalmente explicou-me a carga negativa daquela palavra. No seu caso, tratava-se de seu grande interesse por negócios lucrativos.
Dando uma voltinha no texto, conto que Thomaz casou-se pela primeira vez e teve um casal de filhos, Hipólito e Berenice, enviuvou-se e casou, creio, com uma cunhada. Aí teve mais um casal: Humberto e Grijalva. Berenice casou logo e vivia muito bem com o filho de um grande adversário político. Tudo bem.
Enviuvou-se de novo. Depois, ficou ali numa casa antiga, mas muito bem conservada com um quintal todo plantado e sua vida era orientar os filhos, mantendo os mais novos em colégios noutras cidades e ao mais velho entregando os negócios. Ali sua empregada e companheira Luzia procurava fazer o melhor que podia para agradar a vida daquele velho senhor.
Thomaz Campos estava sempre saudável, barba e bigode escanhoados, bem vestido, sapatos bem engraxados e altaneiro estava sempre de cabeça erguida e olhares ternos e suaves. Na cidade, muitas moças diziam às escondidas e até para que chegasse aos seus ouvidos que ele era um “bom partido”.
Volto ao industrial. Naquele tempo não se costumava chamar esse tipo de negociante de empresário e muito menos de empreendedor. A fábrica de manteiga, como era mencionada por todos os pompeanos, fabricava as manteigas Jussara e Jarina, exclusivamente para exportação. Toda a produção ia para a Holanda, acredito. Era uma delicia aquela manteiga! Os sócios podiam apanhar uma quantidade razoável para seu consumo e tudo era pago no fim do mês. Até por isso, chamavam-no de judeu. Numa cidade daquele tamanho, ninguém esperava que uma “grande” fábrica cobrasse dois ou três quilos de manteiga dos sócios. Onde já se viu?! Ah, os familiares dos fornecedores de creme e que vivessem na cidade, também poderiam levar uma quantidade mínima de manteiga enlatada. No acerto de contas, o valor era descontado em quilos de manteiga. Muito justo, como tudo que o Thomaz fazia. Até mesmo com as obrigações fiscais ele era rigoroso em seu cumprimento.
Lá no meu emprego, sempre que o Thomaz observava um feito meu, digno de elogio, ele dizia: “Se algum dia você sair daqui, quero que vá trabalhar comigo.” Foi o que fiz. Ao deixar meu emprego, eu o procurei. Apesar da pouca idade, ele entregou-me toda a responsabilidade por um turno no Posto de Abastecimento de Combustível e Serviços que a empresa possuía em terreno contíguo com atendimento para a rodovia Pompeu-Abaeté.
Mais tarde o Posto foi vendido e eu trabalhei na Fábrica de Manteiga: serrava lenha para a caldeira, ligava os motores a diesel (a cidade não contava com a energia elétrica), recuperava o piso de entrada, varria interna e externamente a fábrica e seu imenso terreno, recebia o creme que chegava em caminhões ou trazidos pelo próprio fazendeiro nas selas do cavalo: tirava amostras, analisava, registrava tudo nas fichas do fornecedores e encaminhava as latas para junto das batedeiras.
Na época da seca, ou quando o fornecedor tinha prestígio para que batesse sua manteiga na hora ao invés de cálculos das análises, eu me orgulhava de poder fazê-lo. Por fim, pesava e enlatava a manteiga, limpava a gordura externa das latas com serragem e as colocava em caixas para a exportação. Ah, eu mesmo atendi várias vezes o fiscal do DIPOA (Departamento da Produção Animal) do Ministério da Agricultura que ia a Pompéu inspecionar o produto que ele, o fiscal, não cansava de elogiar. Nos intervalos eu recebia os produtos comprados pela empresa ou recebia e entregava o arroz beneficiado na grande máquina instalada na área e que prestava serviços a toda a comunidade. Terminei indo trabalhar no escritório contábil. Relatei tanto sobre mim, para mostrar o quanto aprendi com este senhor.
Mas, voltemos ao nosso notável Thomaz. Foi ele quem me fez passar por todos os serviços de uma empresa e também foi ele quem me ensinou muito do que aprendi na vida. Thomaz era filiado à União Democrática Nacional, UDN, partido político que pregava a moralidade, mas convivia muito bem com todos os adversários políticos. Creio que ele nunca disputou pessoalmente nenhum cargo público.
Thomaz era uma pessoa cordial, e também um homem extremamente comedido em tudo que fazia, mas ao mesmo tempo era ousado em decidir nas suas empreitadas. E fazia tudo com extrema rapidez. Para ele, agir depressa era natural e obrigatório. Tinha muita coragem para negócios e agia com ânimo exagerado. Dormia pouco, mas, deitava e levantava muito cedo. Dizia para mim que cuidava do que era seu porque era sagrado. Preservava sua riqueza porque sabia o quanto ele lutou para construí-la.
No decorrer da vida, que foi de muitos contatos entre nós, eu nunca mais o chamei de judeu! E sempre o respeitei muito.
Thomaz de Oliveira Campos era, como as pessoas diziam, um homem como poucos. Em seu silêncio e objetividade aprendi a admirá-lo e até hoje gosto de refletir sobre este Homem Fabuloso que me fez saber, mais do que acreditar que tudo posso quando tenho coragem, amor, força e ação na hora.
Nesta crônica, além da homenagem pessoal quero deixar para meus conterrâneos de Pompéu uma provocação afetuosa. Pompéu, além de ter uma grande destilaria de álcool de propriedade dos próprios pompeanos, produz quase meio milhão de litros de leite diários, sendo a maior bacia leiteira do Estado de Minas Gerais, e a segunda maior do Brasil. Sua cooperativa de produtores rurais, é a quarta maior acionista da Itambé, maior laticínio de capital nacional. E hoje mais de meio século depois da Thomaz Campos & Cia ter atingido seu auge com a produção de manteiga de qualidade para exportação, nossa Pompéu exporta todo o seu leite “in natura”, sem agregar valor e deixando de criar muitos empregos. Fica a pergunta: já não era hora de termos nosso próprio laticínio? Sua bênção, Thomaz, descanse em paz!
Comentários
Obrigaga pelo artigo de Thomaz Campos.
Sou sua neta e a sua lembança é muito forte e agradável entre nós.
Foi um homem que deixou sua marca; mesmo com poucas palavras soube conquistar as pessoas.
Meu pai, o Hipólito, e seus filhos ficamos emocionados com sua matéria.
Obrigada,
Beth
É muito gratificante e ao mesmo tempo ficamos emocionados pela matéria escrita sobre o nosso querido e saudoso avó. Homem de muita fibra e honestidade.Deixo aqui, nosso agradecimento por um depoimento sincero sobre este homem que deixou tantos exemplos positivos para seguirmos.Hipólito Campos e família.
Olá, sou bisneto de Thomaz Oliveira Campos, gostaria muito de agradecer por essas palavras aqui escritas por você nesta coluna. Fico até emocionado em ler essa história e ver como Pompéu teve um empreededor deste porte e sendo meu bisavô. E gostaria de deixar também registrado meu agradecimento pelo texto explicando sobre meu bisavô e que em brave estarei mostrando isso para o meu avô Hipolito e minhas tias Berenice e Grijalva.
abraços
Ainda pequeno me lembro quando o Thomaz emprestou uma camionete, dessas picaps Willys, ao meu pai Polego, de quem era grande amigo. Homem diferenciado à frente do seu tempo, contava com a admiração do Polego que era muito exigente em termos de amigos.
Nós politicos pompeanos deveriamos nos envergonhar da nossa cidade ser passada para traz perdendo o trem da historia. Pompéu andou em marcha ré por quatro anos. Temos um povo trabalhador e temos muito leite mas não temos empregos e nenhum laticinio. Recententemente estive com o Presidente da Itambé Jaques de Campos Gontijo cujo pai é pompeano (irmão do ex-prefeito conhecido como Lilico das Cabaceiras), e disse a ele da nescessidade de um laticinio em Pompéu. Enquanto lideranças dos produtores de leite de Pompéu brigavam pelo poder no Sindicato e na Cooperativa, os de Pará de Minas apoiados pelo Prefeito da época conquistavam um laticinio da Itambé. Lá tem muita granja porodutora de frangos mas pouco leite, e o mais importante: tem politicos que se preocupam com a cidade e não só com o seu próprio bolso.
Que o Thomaz inspire nossos líderes.
Mais um parábens pela excelente matéria de Sebastião Verly. Pois uma comunidade precisa de conhecer sua história para almejar o futuro próspero e seguro.