Quero primeiro, contar pro senhor que naquele tempo o Brasil passou a ser governado por um ditador, e tinha um ministro que era daqui de nossa cidade. Ele tinha uma bonita fazenda, foi o primeiro criador de zebu da região. Ele contava que tinha uma biblioteca com mais de 150 mil livros. Dizem que foi ele quem escreveu a famosa Polaca, a constituição da ditadura. Naquele então, ele chegava aqui com a calça curta, tipo pega frango. Era seu estilo, sua marca. Eu nunca entendi porque ele usava aquelas calças. Um dia veio buscar uma pessoa simples para cuidar da sua livraiada lá no Rio, 150 mil livros! Eu não sabia nem contar essa quantidade. Eu não quis. Quem aceitou foi o Chico, um negrinho de ponta de rua, que não agüentou ficar nem um ano lá no Rio. Eu e minha família continuamos amigos do todo poderoso. Ele lá e nós aqui. Sempre que o Doutor chegava por aqui, fazia, nem que fosse de passagem, uma visitinha pra nós. Era o seu jeito de ter a gente no partido dele, que sempre elegia um político da família. Se conto ao senhor tudo isso, seo padre, é porque foi com esse ministro que eu aprendi algumas espertezas nessa vida.
Eu ganhava a vida fazendo os serviços de porta, as lidas da casa dum grandalhão que chegou por aqui não sei como nem porquê. Trabalhava sem carteira de trabalho, o que naquele tempo ninguém tinha mesmo. Só o pessoal dos bancos era fichado com carteira. Eles iam pra capital e levavam uma carta no papel com o nome do Banco para tirar a carteira. Era um livrinho marrom. Eu já trabalhava havia algum tempo para aquele estranho e nunca sonhei de ter a tal carteira. Mesmo porque na minha família ninguém nunca teve. Eu só conheci ele pelo sobrenome: Gouveia. Seo Gouveia, com dois metros e um centímetro de altura como gostava de se gabar, era atrevido feito não sei o quê. Por me dê cá uma palha, ou a troco de nada distribuía pescoção, plantava a mão no pé-do-ouvido de qualquer um. Êle era abusado, seo padre! Vivia me maltratando, me chamava de pobre, miserável, zé ninguém, magrelo e uns outros nomes que eu nem sabia o que que significavam. Eu sempre falei: xingar essas bobagens que ele xinga, ele pode. Mas se ele se engraçar de levantar a mão pra mim…. Os colegas riam da minha valentia e mangavam de mim: “cê vai ter que furar o saco dele, porque baixinho do jeito que cê é, é a única parte que cê vai alcançar.”
Não é, seo padre, que o homem inventou de me bater? Não pensei duas vezes. Eu tinha uma faquinha, que a gente chamava de faca de ponta, de umas que não se usam mais hoje em dia. O cabo todo enfeitado. A ponta comprida e afiada servia mais para tirar bicho de pé. Parecia punhal. Foi a conta. Meti a faca no alto de sua barriga, com a intenção de matar mesmo. E ele estrebuchou ali na minha frente. E é daí que vem o remorso que me acompanha até hoje. Morro um pouco a cada dia.
Mas eu quis dizer que foi o ministro que orientou minha família. “Desvalorizem o crime!”. Na resposta ao telegrama de meus irmãos, ele ensinou: “peguem o pior advogado das cidades aí de perto.” Isso porque, naquele tempo, aqui não tinha nenhum advogado. Não conseguimos. Mas, demos sorte, porque um moço daqui que depois ficou famoso, virou deputado e ocupou altos cargos no governo do estado tinha acabado de formar em advocacia. Minha família ajustou os serviços dele. Foi o primeiro júri do Doutor. E também nunca ouvi falar de outro.
No Fórum, salão cheio! Os soldados Rafael e Sebastião me conduziram ao salão do Júri. Do lado do falecido, só o Promotor que veio da Cidade vizinha e a viúva. Eles não tinham filhos. Pelo menos ninguém nunca soube se tinham.
Era dia 19 de março, dia de São José. Eu aprendi com meu pai a não acreditar em Deus nem muito menos em santo. Mas o doutor acreditava, e implorou ao pai de Jesus, e eu saí livre, num caso muito raro, sete a zero! Sem direito de recurso.
Eu quero que o senhor e o seu Deus também me absolvam. Eu posso até pedir perdão, seo padre. Mas arrepender mesmo eu não arrependi não, porque até hoje só acredito na justiça que eu faço com essas mãos aqui. Deve ser a minha ignorância…
Comentários
Tião,
Como sempre suas crônicas fazem muito bem a nós pompeanos.
Quando criança, lembro-me de que meu pai falava neste personagem, o ” seu Gouveia”, mas eu nunca me
lembro de tê-lo conhecido. E também nunca soube que tivesse tido um fim tão triste assim….
Bem, cada um tem o que merece.
Um abração,
Grijalva Maria
Já tinha ouvido comentários da qualidade dos textos do conterrâneo, Sebastião Verly, agora pode experimentar, excelente.
Esse personagem foi acometido pelo pior inimigo do homem: a culpa!