Meus Óculos Cor de Rosa

Publicado por Sebastião Verly 31 de outubro de 2011

Depois da obra “1984”, de George Orwell, eu sempre tive muito cuidado a elogiar qualquer nova tecnologia que surge e que possa influenciar a vida das pessoas. Foi assim com os celulares que demorei a aderir e agora é assim com os tais óculos cor de rosa.

A moça de uma gordura impar ajustou a rudes golpes os óculos em minha cara. Força não lhe faltava. Força e braços bem grossos tem Tamires, esse é o seu nome. Foi logo dizendo que era só pagar no caixa e sair logo da loja. Não sei se as palavras eram bem essas.

O efeito é imediato. Tempos atrás, eu a xingaria com os nomes mais feios que conheço. Hoje vi que essa menina deve ter feito excelente curso de vendas e sabe o que o cliente quer. Ou melhor, o que ele precisa. Perguntei: Você fez curso comigo?, lembrando de meus cursos para vendedores. Ela objetivamente não respondeu.

Percebi que a sua objetividade me dará mais prazer na vida e quanto mais cedo melhor. Não vamos perder tempo com aquelas conversas de vendedores. Papos inúteis. Sai dali e quis passar no Sebo, logo na rua de cima. O sebo agora é só de livros escolares para primeiro e segundo graus. Perguntei ao rapaz que atendia para onde tinha ido o “Páginas Antigas”, meu sebo preferido.

– Não sei e nem quero saber, respondeu o gaiato.

Olha aí a vantagem dos novos óculos. Vi claramente como o rapaz era objetivo e não me deixava perder tempo. Os jovens de hoje são bem mais diretos e claros. Saí ainda mais feliz.

A chuva começou a cair e com meu novo equipamento pude ver como é bom morar em BH: as águas se acumulavam nos bueiros entupidos por lixo e folhas de árvores e criavam verdadeiras piscinas. Quanta beleza, e de graça! Nos bairros, a coisa ainda é mais linda porque leva terra ao natural: vermelhinha.

Tentei entrar na Casa de CDs e o dono sabendo é claro que eu iria perder mais tempo mostrou-me sua cara fechada como a dizer vá embora, já que não vai comprar nada mesmo! Isso me fez compreender que felizmente as pessoas preocupam mais com você do que tudo.

Entrei na livraria e, talvez para fazer graça, disse ao gerente, que por sinal era meu conhecido e tem meu primeiro nome:

– Xará estou entrando com um livro. Tem problema?

O Xará apenas deu um muxoxo. Muxoxo é aquele barulhinho que a gente faz com os lábios para mostrar um certo desagrado. Mas, no seu caso era a tal e preciosa objetividade. Para que tomar meu tempo expressando em palavras. A chuva parou e ainda dava tempo de voltar ao Banco do Brasil, de onde sai com tanta raiva ontem. Hoje seria a prova de fogo para os novos óculos.

Cheguei correndo a tempo de tirar a última senha, aquela mesma que ontem julguei uma burocracia inoportuna, para ir diretamente ao caixa como me ensinou rispidamente a Rafaela, atendente que me prestava seus serviços no dia anterior.

Fui ao caixa e a moça inicialmente horrorosa, logo se transformou com meu novo auxiliar ótico. O que é que o senhor quer: sacar, pagar, o que é? Como disse anteriormente, que beleza é lidar com os jovens de hoje. Objetividade clareza e tudo que o cliente mais precisa.

Quero transferir meu saldo de conta corrente para uma conta de poupança.

– Trouxe a Carteira de Identidade?

– Eu o sei de cor é …

– Quero ver a carteira de identidade, disse com toda a saudável energia que traz no corpanzil.

Sorri agradecido por tamanha gentileza. Espero que ela não me tome por irônico, mas gostei mesmo da moça. Digitou algo e entregou-me dois tickets. Eu quis maiores explicações porque sabia que fora minha a ultima senha dada para o caixa preferencial dos idosos, mas ela me antecipou: olhe para trás e verá quantos cabeças brancas ainda tenho que aturar hoje.

Olhei e vi que alguém poderia conseguir entrar depois do horário de fechamento da agência, nunca se sabe e fui embora feliz da vida. O atendimento hoje é muito mais prático. A perda de tempo acabou.

Estava com sede e um pouquinho de fome e decidi passar no supermercado para comprar algo. No tal caixa dos “pés na cova”, a moça conversava com a colega que quando está de boa vontade embala as compras.

A moça do caixa, ao invés de me entregar o troco nas mãos o colocou em cima de uma das compras e continuou a conversa com a colega embaladora. Com meus novos óculos pude ver que ambas consideram o idoso uma pessoa capaz e saudável e nada de ficar tratando-o com mesuras.

Satisfeito fui para casa passar uma flanelinha nos meus novos óculos. Leio na internet que o Brasil já é o quinto país com maior número de usuários de óculos cor de rosa do mundo. Indico o inclusive para a presidenta Dilma pois tenho certeza que ela vai adorar a Política de Segurança Pública de seu governo.

Comentários
  • Jack Maddux W. 4767 dias atrás

    This is a very funny article. Here in Brazil they have the expression ” see things in a pink color” like in the inicial phase of a romance is called the pink colored phase.

    • verly 4658 dias atrás

      Muito obrigado, Jack. Fico feliz de saber que você le nossos artigos.
      Sebastião Verly

  • Maria Eugenia 4769 dias atrás

    Estão ótimos os artigos publicados pela Fundação Metro. Parabéns.
    Maria Eugênia

    • verly 4658 dias atrás

      Muito obrigado pelo elogio e mais ainda por ler nossos artigos.
      Sebastião Verly

  • Marcio 4771 dias atrás

    O que é pior é que este ministro que não consegue nem convencer a presidente que o governo federal tem algum tipo de responsabilidade no combate à violência quer desarmar o povo brasileiro. É muito “Venha a Nós” e nada de “Vosso Reino”. Todos estamos precisando de um óculos cor de rosa.

    • verly 4658 dias atrás

      Qu bom que você cria polêmica. Comente sempre nossos artigos
      Sebastião Verly

  • Geraldo Pinto 4771 dias atrás

    Muito oportuno este artigo, e para ajudar nossa presidenta, que tem personalidade forte, e por isso tende a se cercar de pessoas acostumadas a engolir sapo, solicito a transcrição de trechos do artigo publicado pela Folha de São Paulo do dia 25/10/2011 na página 3, coluna Tendências/ Debates de autoria de Luiz Eduardo Soares, que foi Secretário de Valorização da Vida em Nova Iguaçu-RJ de 2006 a 2009, Secretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro 1999-2000 no governo Anthony Garotinho e secretário nacional de Segurança Pública, 2003, no governo Lula. É antropólogo, autor de “Meu Casaco de General” e coautor de “Tropa de Elite”, que gerou o filme, entre outros livros, ou seja, pode ser polêmico mas é do ramo.
    O título do artigo é “Tranquila e infalível como Bruce Lee”, dá para ver que o autor é chegado em filmes de Ação. Depois de pincelar a realidade da violência no Brasil o autor narra este episódio sobre a tentativa de elaborar uma política de segurança pública para o governo da presidenta Dilma:
    “Para reverter essa realidade dramática, uma equipe qualificada do ministério (da Justiça) trabalhou todo o primeiro semestre de 2011 na elaboração de um plano de articulação nacional para a redução dos homicídios dolosos, valorizando a prevenção mas com ênfase no aprimoramento das investigações.
    Um plano consistente e promissor, que não transferia responsabilidades à União, mas a levava a compartilhar responsabilidades práticas. Em meados de julho, chegou a data tão esperada: o encontro com a presidente. O ministro (José Eduardo Cardozo) passou-lhe o documento, enquanto o técnico preparava-se para expô-lo.
    Rápida e eficaz, tranquila e infalível como Bruce Lee, a presidente antecipou-se: “-Homicídios? Isso é com os Estados”. Pôs de lado o documento e ordenou que se passasse ao próximo ponto da pauta.”
    Alguns dados levantados por Luiz Eduardo Soares em seu artigo:
    1) Enquanto a taxa média nacional de esclarecimento de homicídios dolosos é de 8% (92% dos homicidas permanecem impunes, nem sequer são identificados nas investigações policiais), o país entope penitenciárias de jovens pobres, com baixa escolaridade, não violentos, que negociavam drogas no varejo sem envolvimento com o crime organizado.
    2) a escalada do encarceramento no Brasil, cujas taxas de crescimento já eram campeãs mundiais: de meados dos anos 90 até hoje, passamos de 140 mil a mais de 500 mil presos. Em termos absolutos, só perdemos para a China e para os Estados Unidos.
    3) O Brasil é o segundo país do mundo em números absolutos de homicídios dolosos, em torno de 50 mil por ano, atrás apenas da Rússia.

    Aí o autor pergunta:

    1) Ao condenar esses jovens à privação de liberdade em convívio com grupos profissionais e organizados, que futuro estamos preparando para eles e para a sociedade?
    2) Não há uso mais inteligente para os R$ 1.500 mensais gastos com cada jovem preso que não cometeu violência?

    • verly 4658 dias atrás

      Muito obrigado pelo seu comentário rico de informaçãoes.
      sebastião verly

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