No filão das mudanças em Belo Horizonte, garimpei um pouco a memória para resgatar os hábitos alimentares, dos pobres, ou os gastronômicos, dos ricos, no dia a dia da BH dos meados do século passado. Gente, falo de brincadeira, pois o chamado tecido social daquela época não estava tão partido, não havia um apartheid social tão nítido, como nesses tempos de globalização! De outra feita vamos falar dos restaurantes e garçons. As bebidas merecem outra crônica. Também farei uma especial sobre o Mercado Central.
Para começo da história temos de registrar o famoso Kaol. O correto do nome seria Caol com a inicial C. Porque resumia os componentes do prato que eram arroz, ovo, lingüiça tendo como aperitivo uma cachacinha de entrada. Era escrito com K para aproveitar a força comercial do produto usado para limpar metais. Na porta do Café Palhares, bem ali no centro, na rua Tupinambás diariamente se renovava a placa de fundo negro e escrita com a pasta de alvaiade. Kaol Cr$ 3,00. A qualquer hora do dia ou da noite ali era o ponto certo para comer o famoso Kaol. Outro dia conversando com um motorista aposentado, o senhor Herculano, ele lembrou com saudade dos tempos que alta madrugada parava o carro em frente ao Palhares para saborear um Kaol e depois ir para casa dormir.
Outro prato que chamava atenção na Avenida Afonso Pena era o Virado à Paulista. Esse prato também era anunciado na tal placa escrita com alvaiade. Havia sempre um engraçadinho que apagava o r da palavra “Virado” na placa. Depois vinham os PF – Pratos Feitos que predominavam no dia a dia. Os PFs geraram os “rápidos” e os “executivos”.
Nas casas mais concorridas o risoto sempre estava na moda e dizia-se que era uma forma de aproveitar restos. O primeiro risoto que comi quando cheguei a BH foi num restaurante próximo da zona boemia que se identificava como “Restaurante Rio Branco” num letreiro de néon verde. De brincadeira, a gente dizia que o nome completo do prato era resto dos outros e resumidamente risoto. Não sei porque me vem à boca ao lembrar do risoto de frango e mesmo o de camarão do Restaurante Toniolo que ficava ali na Rua Curitiba quase esquina de Carijós. Seu fim foi trágico: um incêndio o destruiu completamente, logo depois que eu, freqüentador assíduo, saí e os funcionários fecharam as portas numa madrugada fria. Lá também era servido o gostoso Filé a Cavalo, um bife e dois ovos e o Filé à Camões, que é um bife acompanhado por apenas um ovo frito. Merecia destaque o arroz à grega, um arroz cheio de vagem e passas.
Pizzarias, além do Toniolo, existiam umas cinco ou seis: uma delas, o Guarujá, que há mais de 50 anos continua no mesmo lugar. No Guarujá, na Avenida Amazonas próximo ao CEFET, foi onde passei dez anos comendo a pizza brotinho, que recentemente ameaçou voltar, mas já não tem o mesmo prestígio de outrora. Naquele restaurante serviam também um Filé à Rossini acompanhado de batatas grisette, e um outro denominado Filé à Parmigiana que eram de se comer ajoelhado. Hoje, ou mudaram esses pratos ou mudou meu paladar. O gosto parece muito diferente.
Comiam-se também bastante peixadas. O Peixe à Brasileira e o Peixe à Baiana eram pratos caprichados e muito bem feitos. O último era servido com um molho bastante apimentado. O Peixe à Brasileira trazia junto um rico pirão de farinha de mandioca. Ah, que delícia eram as caças do Restaurante Tavares, bem no inicio da Rua Santa Catarina. O meu prato predileto era a paca, mas ali se comia também um bom tatu e até um veado com farofa. Este restaurante foi lá para o Belvedere, num lugar muito bonito, mas um amigo meu me diz que eles têm mania de colocar música em alto volume, o que não condiz com a clientela nem com a paisagem, nem com a sofisticação da culinária. Mesmo assim elogiou muito o javali que ali ainda é servido.
O “Feijão Tropeiro” com torresmo, lingüiça, arroz e ovo frito? Tropeiro sem torresmo seria inaceitável. Lombo com tutu de feijão e couve era outro dos pratos mineiros famosos.
O que resiste bravamente, apesar do calor exagerado que reina em nossa capital, é a feijoada. Em alguns restaurantes usava-se acrescentar “completa”. Creio que foi o Stanislaw Ponte Preta quem disse que feijoada completa tem que ter a ambulância estacionada na porta. Um pouco diferente da carioca, a nossa feijoada é rica em complementos: rabo, pé, focinho e orelha de porco, uma carne de jabá, um charque diferenciado, carne de sol, bacon, lingüiça comum, calabresa, paio e umas folhas de louro. Acompanha um molho de pimenta feito com o caldo do feijão e folhas de cebolinha bem picadas. As feijoadas mais famosas foram as do Minas I, a do Atlético e do meteórico Casa Branca, na Av. Antonio Carlos 1849.
Ainda hoje é encontrada religiosamente às sextas-feiras em alguns “self services”, ou “serve-serve” em dialeto caipira. Posso citar o Couve Flor na Avenida Olegário Maciel em Lourdes, ou o Fruta Pão, no Alto da Avenida Afonso Pena. Todos oferecem uma pinguinha ou caipirinha para acompanhar. Elas servem para antecipar o “happy hour” das sextas-feiras.
A canja de galinha era altamente recomendada principalmente para curar uma ressaca. Havia um restaurante na rua da Bahia, o Albamar, que fazia uma canja de dar água na boca. Maravilhosa! E muitos restaurantes serviam sopa de legumes que era considerado um prato leve.
O forte mesmo em BH eram os macarrões. O molho à bolonhesa era o mais requisitado.
Não podemos esquecer o nosso delicioso frango ao molho pardo, que no nordeste é chamado de galinha de cabidela. O Restaurante Maria das Tranças ficava lá na região da Pampulha, no Bairro São Francisco, e era reservado a uma elite privilegiada. Agora a matriz fica no Bairro Funcionários, na Avenida Professor Morais, e a sede antiga, ampliada para um grande galpão com telhas de metal, sem forro, virou uma filial mais popular, onde no entanto todos reclamam do desconforto em dias quentes. Mas é um bom lugar de se saborear um frango ao molho pardo. Ali merece também registro especial o Frango à Moda Caipira com Fubá de Moinho d’água. Os donos do restaurante afirmam que seu frango é de fornecimento exclusivo.
Duas influências significativas; o caldo de mocotó e o surgimento da Galeria do Ouvidor que concentrava diversos estabelecimentos com os mais variados pratos e gostos. A comida era preparada com toucinho, gordura de coco, óleo de amendoim ou de semente de algodão. O óleo de soja seria o responsável, ainda que em parte, pela mudança nos sabores?
E por fim, lembrar da salada denominada por nós como 365. A salada era sempre a de tomate e alface. O ano inteiro, daí o apelido que lhe demos. Em restaurantes de melhor categoria a salada podia ser mais rica e contar com umas rodelas de palmito, além de cenoura e beterraba.
Um amigo me lembrava que na Rua dos Caetés havia um restaurante árabe, o Rubayat, que servia um delicioso cachorro quente com uma salsicha de gosto inesquecível durante todo o dia e, naturalmente, comida árabe. E por falar em salsicha não podemos esquecer o Tip Top, que ainda hoje funciona em Lourdes, na Rua Rio de Janeiro, que oferece uma fabulosa tábua de frios com vários tipos de salsicha. Uma das marcas dessa casa é a honestidade de marcar a quantidade de chopps servidos numa cartela controlada pelo cliente. Esse é um ponto fraco de nossos bares, o de não permitir ao freqüentador controlar seu consumo, o que dá margem a mil e uma maracutaias, principalmente entre os estabelecimentos que servem bebidas alcoólicas. Diga-se que esse mal não é peculiar a BH. Em outra grande capital do Sudeste, terra de espertos, é muito pior.
É preciso dizer que os estudantes e trabalhadores contavam com o Restaurante Popular da Prefeitura ali no subsolo do Cine Brasil onde serviam uma comidinha simples com direito a banana, um copo de leite e cafezinho. Tudo isso por um cruzeiro. Lá embaixo, onde hoje fica a Rodoviária, para o lado da Rua Paulo de Frontin havia outro restaurante popular a cincoenta centavos onde freqüentavam até mendigos e as prostitutas da redondeza.
O Miolo de boi ainda existe ali na Rua Tupis próximo à esquina com Rua São Paulo. Basta pedir ao garçom que atende pelo apelido de Passarinho.
É preciso registrar também um sanduíche de pão francês com mortadela da Padaria Boschi ali na Rua Rio de Janeiro que custava Cr$1,50 e faziam fila para comprá-lo. Igualmente, não podemos esquecer dos sanduíches de filé e de pernil “no capricho” do Valdir da Gruta Ok. Na tal Gruta OK serviam-se umas coxinhas cuja massa nunca mais eu encontrei em lugar nenhum. Uma delícia mesmo. Na Rua Tupis, 25, havia o restaurante Indaiá, mais conhecido por Buraco do Rato, que servia uma lingüicinha para tira gosto que era uma gostosura.
Vale registrar o badalado Mocó da Iaiá na rua Carijós ponto dos jornalistas depois de fechar as edições dos jornais ou dos programas noturnos de rádio. Ali se serviam todos os pratos citados nesta minha história. O Silveira, ex-proprietário, ainda anda por aí.
Os tempos mudaram e muitas das boas comidas foram substituídas, outras desapareceram completamente e muitas novas surgiram.
E assim vemos que tudo muda e hoje em dia muda ainda mais rapidamente.
Agora o que vige são self services onde você encontra uma variedade sem sabor que exige uma mistura de temperos no prato para melhorar um pouco o gosto da comida.
Hoje, existem milhares de bares, dizem que são 20 mil, o que faz de BH a capital dos butecos, e uma meia dúzia de restaurantes de alta categoria, mas este é assunto que merece outra crônica.
Comentários
Li varios sites sobre o restaurante Tavares procurando identificar o que conheci com minha esposa na decada de 70. O Tavares que
conheci ficava no centro no que parecia ser uma garagem e a fumaça que saia do braseiro, que
ficava’ logo na entrada, enchia todo local,quase
não dava pra respirar. Atraz da bancada onde
ficava o braseiro trabalham varias gordas negras
que cuidavam dos leitãozinhos trazidos em
carrinhos de mão, pelo meio do salão.
Sensacional.
Lembrei de todos.
Il semble que vous soyez un expert dans ce domaine, vos remarques sont tres interessantes, merci.
– Daniel
Estou lendo todos os artigos do Sebastião Verly — passei a vista por todos, li o último (onde deixei um pequeno comentário) e saltei para o início — que são de uma riqueza inigualável de detalhes, muito típico de grandes escritores. Como pode alguém relembrar detalhes de todos esses restaurantes, descrevendo os pratos e citando nomes de pessoas e endereços, tudo com muita riqueza de detalhes? Tudo isso numa leitura agradável e que nos prende do princípio ao fim. Depois que citou os vários nomes e locais, lembrei-me, praticamente de todos, embora nunca tenha estado em muitos deles. Mas, se não tivesse lido o artigo, jamais me lembraria da maioria.
Estou gravando todos numa pasta especial.
Entrei no site por acaso: Quando cliquei no blog do meu amigo Experidião, fui automaticamente direcionado para este aqui. Achei estranho, mas agora vejo que foi um feliz acaso!