Histórias de meu pai – O diabo advogado

Publicado por Sebastião Verly 6 de janeiro de 2017

Histórias de meu pai – O diabo advogado

Quem já bebeu uma cachacinha no armazém, em botequins de última categoria entenderá bem a história que meu pai nos conta hoje.

O que eu gosto mesmo é da magia de sua preparação dos contos de cada noite. Seus causos envolvem cenários, protagonistas e figurantes com a completa transformação de uma simples casa do humilde bairro pompeano d’Os Cristos num dos maiores teatros do mundo. E Paulo Autran que revire de inveja lá em sua cova.

O primeiro cenário é exatamente o armazém de secos e molhados, onde o cidadão costumava apreciar a branquinha, cachaça, boa, firulinha, caninha, oncinha, velho, goró, birita, cangibrina, aquela que matou o guarda, água benta, água doce, água que passarinho não bebe, capote de pobre, entre muitos outros nomes populares.

“O gesto de jogar um pouco da bebida no chão, antes de beber, nasceu num ritual chamado Libação, criado por gregos e romanos, e consistia em uma oferenda aos deuses para que eles provessem os lares de felicidade, harmonia e fartura” explica hoje em dia o pesquisador.

Tudo começa com aquele brinde: “para que nossas esposas não morram viúvas e nossos filhos sejam filhos de pais honrados e de mães boas”.

O velho costume restringiu-se a jogar uma pro santo e recomenda-se jogar para ele antes de sobejar o copinho apropriado. Se jogar a primeira pro santo, a pinga torna-se mais gostosa, vira água benta e desce muito bem. “Redondinha” como falávamos no interior toda vez que a bebida não queimasse a garganta.

Numa dessas vendinhas de beira de estrada, o caboclo sempre que passava de viagem, atirava a sua primeiro, mas a oferenda era diferente. Dizia sempre:

-“Pro senhor diabo, nem pro bem nem pro mal.“

Prendia a respiração e sorvia de uma vez a cachacinha gostosa. Por onde passasse, e tomava todos os dias, repetia sempre o mesmo ritual e a mesma dedicação.

Numa de suas viagens, o dinheiro escasso ainda deu para tomar uma e oferecer a pontinha ao senhor diabo. Mas faltou dinheiro para a refeição. Felizmente nosso personagem já havia, nas vezes anteriores, conquistado crédito e foi fácil conseguir quem lhe fiasse meia dúzia de ovos cozidos mais do que suficientes para chegar ao final de mais uma campanha de negócios por este mundão sem fim.

A mulher que lhe vendeu os ovos fiado esperou durante um ano para que o mascate retornasse por aquelas bandas e resgatasse a dívida. Honesto, como deve ser todo viajante que se preze, nosso amigo tardou mas não faltou em procurar a credora para saldar seu débito.

A mulher apresentou-lhe uma conta absurda e ele quis saber que loucura era aquela aritmética estapafúrdia. Ela, a credora, calmamente, explicou-lhe que no mesmo dia em que lhe vendeu os ovos pôs uma galinha para chocar seis ovos que lhe deram 6 franguinhas poedeiras que em pouco mais de dois meses renderam-lhe uma dúzia de ovos cada uma para se tornarem chocas e renderem mais 72 crias, das quais ela trocou os machos por fêmeas e tinha agora 78 galinhas poedeiras que colecionavam mais de oitocentos ovos bem fresquinhos.

A mulher propôs um abatimento para acordo, mas foi rejeitado pois o devedor continuou achando a conta exorbitante e o caso acabou na justiça, na sábia justiça!

Nossa sala acabava de tornar-se um tribunal com aquele ranheta lá na frente a comandar a encenação, com um martelo de madeira na mão, mais a mulher, seu advogado e nosso pobre viajante. Esperavam um desconhecido rábula que se ofereceu para defender seu mais novo constituinte.

Não mais que de repente, a porta da sala de nossa casa virou a porta de acesso à sala do julgamento que ali se instalou pelos poderes de meu velho pai, e por ela entrou como um furacão, nada mais nada menos que o senhor diabo. Vinha coberto de um fino carvão espalhado pela roupa, rosto e pelo corpo todo. Veio, soube-se depois, em agradecimento àquelas pingas tão gostosas e cheirosas que o viajante, diferente de todo mundo, antes de beber lhe oferecia.

– Meritíssimo senhor juiz, meu caro colega da acusação, peço mil desculpas, mas, pelo calendário agrícola da região, hoje era o último dia para o plantio de favas.

O juiz, impertinente como sempre e aplaudido pelo advogado da parte reclamante, perguntou o que teria isso a ver com o julgamento.

E o nosso causídico improvisado respondeu:

– Eu estava torrando sementes de favas para plantar.

O juiz, demonstrava irritação e, como todos os seus pares no mundo, muito mal-humorado, contestou:

– Fava torrada não nasce.
– Então, senhor juiz, ovo cozido também não dá pinto, arrematou o capeta.

E recebeu aplausos de todos por haver defendido tão bem o simples homem que tinha aquele saudável hábito de dividir sua bebidinha com o estranho das longínquas trevas.

Comentários
  • Antonio Ângelo 2906 dias atrás

    Boa história, Verly! Bom que a tenha registrado com todo o clima e climax! E que venham outras.

  • Germano 2907 dias atrás

    Parabéns ao autor pela memória extraordinária, pela capacidade narrativa, me senti presente no momento que a história foi contada, continue nos permitindo usufruir desses relatos fantásticos.

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