Do leite, do leiteiro, do seu filho e da cascata do ribeirão
Esse causo é velho mas é bom, merece ser repetido sempre, pois os mais jovens podem não conhecê-lo. Em várias cidades do interior de Minas causos idênticos são contados pelos mais velhos, com personagens locais, o leite, o leiteiro, seu filho e algum córrego ou ribeirão de águas abundantes, cristalinas, caudalosas e piscosas, repletas de piabas e lambaris.
Nas capitais, naqueles anos de 1950, o leite já era pasteurizado e distribuído em garrafas de vidro de um litro, boca de cinco centímetros tampada com papel alumínio resistente. Como sempre, nas padarias, onde era vendido ao lado do pão, que de hora em hora saía quentinho. Me lembro que uma camada do creme do leite vinha colada na tampinha e eu adorava lambê-la.
No interior o leite vinha da fazenda de parentes, de algum sitiante que tirava o leite de meia dúzia de vaquinhas nas cercanias da cidade ou eram comprados no leiteiro que, antes do nascer do sol, saía coletando o leite em algumas fazendas mais próximas, para vender em sua leiteria na cidade.
Assim era na minha Pompéu, então uma cidadezinha de 14.000 habitantes, dois terços na área rural e um terço na área urbana e periférica. A vida, que se pretendia pacata, era esporadicamente interrompida por alguns crimes passionais de grande repercussão na capital e daí para o restante do estado, que por um bom tempo abalavam a boa fama do lugar.
Lá o velho Sinhô Toureiro ao primeiro canto do galo pulava da cama, desarrebuçava seu filho João e sem esperar o café partia em seu velho Jeep Land Roover com tração nas 4 rodas pelos caminhos poeirentos ou lamaçais recolhendo leite em 4 braúnas de 50 litros. Antes de 9 horas estava de volta quando ocupava o pequeno cômodo de cimento queimado totalmente despojado para vender seu produto aos que ali acorriam com suas “leiteiras” de latão ou de alumínio, esse uma novidade na época.
Rapidamente vendia os 200 litros, embolsava as notas amarrotadas com que lhe pagavam e chegava a hora de lavar o estabelecimento. Trazia de sua casa, a 3 quarteirões dali as braúnas com água da cisterna e jogava no piso de cimento para eliminar o leite respingado no chão e o grande tambor de latão, provido com uma torneira de onde se extraía o leite. A água escorria pela rua forrada de cascalho onde deixava aquele cheiro azedo.
Algumas más línguas da cidade espalhavam a fofoca carente de comprovação de que encontraram uma pequena piabinha no leite ou mesmo a viram pulando no terreno da frente do depósito.
O folclore se espalhou de forma bem humorada e contam que certo dia o Tio Pedro muito brincalhão esperou a chegada do leiteiro com uma varinha de anzol na mão pedindo licença para fisgar um lambari no tambor de leite.
Mas, o Sinhô se mantinha impassível e sóbrio, negando credibilidade às maledicências.
Contava-se que ele e seu filho João, certo dia nessa rota matutina passavam pelo ribeirão do Pedro Moreira, onde a água límpida cascateava ao lado da estrada de terra em que transitavam, bons tempos aqueles!, e o João, entusiasmado teria dito:
– Pai já imaginou se isto tudo fosse leite? Íamos ficar ricos!
E o Sinhô respondeu:
– Cê tá doido, João? Onde a gente ia arranjar tanta água para misturar nesse leite…?
Comentários
Velhinha mas não perde a graça, especialmente pelo talento literário do autor. Pena que anda sumido do metro.