Consegui levantar mentalmente 50 mudanças de endereços desde que me entendo por gente. Tenho que avisar para meu irmão que faz a revisão de meus textos que é cinqüenta mesmo. Mudei demais. Mudei tanto que resolvi escrever um tratado sobre a vizinhança. Falta apenas tempo para essa empreitada. Mas, comecei a me lembrar dos principais lugares em que morei e identificar como era a vizinhança. Escrevo vizinhança para incluir pessoas físicas e jurídicas e os movimentos da comunidade.
Na primeira mudança da minha vida fui morar defronte à fábrica de manteiga da minha pequena Pompéu. Que barulheira para uma cidade pacata. Na minha casinha de origem o único barulho que a gente ouvia eram os sapos e grilos durante a noite. Agora, na fábrica, os caminhões chegavam à noite, as caminhonetes saiam cedo e durante o dia além de tudo as máquinas não paravam.
Mudando para a capital fui morar com minha família num barracão que de um lado não tinha barulho, mas tinha um carroceiro que começava sua labuta cedinho e acordava a gente antes do horário devido. Aí aprendi que a vida na metrópole é sujeita a barulho de toda espécie. A cada endereço novo um ruído diferente. Fui me acostumando. Ás vezes, queixava-me, mas com o tempo aprendi que sempre que reclamava de um tipo de barulho, os mais velhos sempre me aconselhavam a me adaptar. “A vida é assim mesmo”. Todos queremos o silêncio “dos outros”.
Fui morar em acampamento de obras e quase não acreditei que era possível dormir com um barulho daqueles. As máquinas e caminhões rodavam a noite toda como se fosse no nosso teto.
Mudei novamente, agora para Nouakchott, Capital da Mauritânia, na África, e já nem acreditava no silêncio reinante nas noites e mesmo nos dias no bairro onde eu morava. Só os ruídos normais dos carros nas ruas e das crianças gritando. Depois morei em Salvador na Bahia, onde as pessoas adoram dormir e eu também tive sossego para curtir as noites, salvo o som das festas constantes. Quem gosta da sua casa, gosta de chegar em casa, de estar em casa em paz. E esses momentos têm sido cada vez mais desejados pelas pessoas.
Transferi-me para o Uruguai e novamente em acampamento de obras onde o barulho era exagerado. Além disso próximo à minha casa foi instalada a antena de telecomunicações e o barulho era ensurdecedor.
Volto para o Brasil. Fui morar em Juiz de Fora, segunda maior cidade do Estado de Minas Gerais, que por ficar na divisa com o Rio de Janeiro e mais próxima do Rio que de BH, tem hábitos mais cariocas que mineiros. O prédio em que eu morava ficava próximo à avenida principal e toda noite a gente acordava várias vezes. Especialmente quando o Flamengo jogava e mais ainda quando ganhava, aí é que o barulho era a noite inteira. Não tem problema comemorar, mas também não precisa passar a noite literalmente “corneteando” os nossos ouvidos, mesmo porque não estávamos “nem aí” para o jogo.
Retorno à Capital e fui morar justo na frente e de uma garagem de ônibus. Dessa vez eu não resisti e fiz uma reclamação junto à Secretaria de Meio Ambiente. O assunto ainda era novidade e o funcionário da municipalidade foi até minha casa para uma vistoria, como chamam os barnabés da Prefeitura. O rapazinho tentou inclusive me consolar: “o senhor não acha que é melhor o barulho dos ônibus do que os de balas das vilas e favelas?” Não respondi.
Para mim barulho é barulho. Barulhos vindos de situações com manifestações boas, momentos bons, também festas, namorados empolgados, risos, brincadeiras… Tudo é barulho.
Pouco tempo depois mudei para bem próximo da rodovia de entrada da cidade e aí é que eu não dormia mesmo. Mudei outra vez para um lugar que ficava perto da favela com o sugestivo nome de Sovaco da Cobra. A policia fazia constantes batidas nas imediações, e os tiros não me deixavam dormir ainda que os bandidos me garantissem que ali era um lugar tranqüilo. Escrevi um artigo que todo barulho de vizinho era melhor do que ressonar das balas perdidas.
Há pouco tempo, no meu endereço atual, havia um cachorro cujo latido intermitente acabava com minha paciência. Eu pensei em todos os meios de resolver a situação. Numa madrugada de sábado, na segunda rua transversal, meia dúzia de tiros silenciaram uma mulher ligada ao tráfico de drogas.
A partir daquele momento, eu decidi que serei um arauto da boa convivência com a vizinhança, por mais barulhos que fizerem. Por mais estridente que seja o barulho, ainda dou um sorriso amarelo e “tudo bem!”.
E para conquistar ainda mais sua confiança, dou a garantia de que chegará um dia em que encontraremos um lugar em que nós e nossos vizinhos conviveremos em silêncio absoluto.