A Folia de Reis em minha memória

Publicado por Sebastião Verly 30 de dezembro de 2024

Na nossa pequena cidade de Pompéu, quando eu era criança, lá pelos idos de 1950, no período de 24 de dezembro, véspera de Natal, até o dia 6 de janeiro ou Dia de Reis, sempre se organizava um grupo de foliões, cantadores e instrumentistas que percorriam, de ponta a ponta a cidade, em longas caminhadas. Entoavam ou desentoavam, às vezes, versos relativos à visita dos Reis Magos ao Menino Jesus. Ela apresenta um caráter profano-religioso, fazendo parte do ciclo de festas de Natal e Ano Novo.

A representação dos Reis Magos, ainda que eu não os distinguisse ali na hora, trazia em minha mente a presença, nítida até hoje, do Presépio armado dentro da igreja e nas casas de muitas famílias, onde lá estavam as representativas estatuetas dos sisudos Reis, sob uma estrela de papel salpicada de purpurina prateada.

As lendas eram muitas. Dizia-se que o lider ou “tirador” da folia não poderia parar, a menos que um herdeiro seu, filho, genro, irmão prroseguisse com a missão. Se rompesse a tradição, o tirador morreria, no ano seguinte. E citavam um chamado Cirino mais dois ou três exemplos que morreu por ter abandonado a tradição. Havia a certeza de que quem “tirasse” folia um ano se comprometia a continuar por sete anos seguidos.

Outra tradição era a de que quem não desse a esmola para a Folia de Reis, acabava tendo uma grande perda de bens no ano seguinte. Em casa, minha mãe e meus irmãos mais velhos contavam, assim como quem não quer nada, essas ameaças e justificavam o exercício daquela festa “religiosa” e nossa obrigação de receber bem a folia e dar alguma esmola ou presentinho.

O Zé Barba, que ainda deve estar vivo, era um bom tirador de folia. Sua casa ficava na parte alta da periferia chamada Vargem do Boi e dali partia aquela turma animada. A maioria dos componentes era gente desconhecida. O “tirador” da folia arrebanhava gente simples, alguns desocupados, outros trabalhadores avulsos, como Vital Batata, malandro que ele só, todos muito interessados em dividir o “adjutório” ou esmolas que recebiam pelas apresentações, além de comer e beber de graça durante aqueles dias.

Depois de orientações do chefe, um pequeno ensaio especialmente para as entradas e falas na hora certa, saiam cedo, e começavam pelas casas mais próximas. A folia prosseguia pela noite adentro em longas caminhadas, levando à frente, a “bandeira”, estandarte enfeitado com motivos religiosos bem simples e coloridos, que para os responsáveis deveria merecer especial respeito. A bandeira traz em si os seus signos e significados e é símbolo maior da folia.

Passavam de porta em porta em busca de oferendas, que variavam de um prato de comida a uma simples xícara de café. Uma cachacinha poderia ser discretamente servida. A maioria das familias, quando recebia a Folia de Reis em sua casa oferecia coisas de comer ali na hora – bolos, doces e até algum salgadinho – e, mais raro, presentes como frangos, linguiça, até ovos, alguma fruta ou um pouco de cereais colocados num saquinho de papel.

Quando chegavam à porta da casa, começavam a cantoria. As letras das músicas apelavam para o “bom coração” para o sentido religioso e havia sempre um auxiliar, trajado de palhaço, também com máscara ou cara pintada para arrecadar os donativos. Apesar da adaptação ao tipo cultural e meio de onde vinham os foliões e onde era tirada a folia, os versos e até o ritmo e a melodia varavam gerações e guardavam o mesmo sentido.

Em anos de mais fartura era possivel contar com todos ou quase todos os instrumentos para uma boa folia, que a rigor deveriam constar de viola, violão, sanfona, reco-reco, chocalho, cavaquinho, triângulo, pandeiro. Improvisavam-se um pão com tampinhas de garrafas pregadas ou um arame onde se enfiavam as mesmas tampinhas. Faziam danças que simulavam lutas entre si, com batidas secas dos paus que se cruzavam e provacam um som marcante.

Havia, quando o terreno da casa ou fora dela houvesse cimento ou grama, uma dança que eles chamavam de lundu em que um ou dois dos participantes rolavam no chão e se levantavam em saltos ágeis e ligeiros, quase artisticos. Curioso e, naquele tempo parecia bem normal, quase todos dançavam descalços e houve até um foliãio que vi calçado de sandália de couro cru, que nunca me saiu da memória. As roupas eram coloridas, havia calças e camisas de cetim que contrastavam geralmente com a pobreza e mesmo com a pele negra da maioria dos foliões.

Para a maioria das pessoas visitadas, eram todos foliões, apenas. Não havia a preocupação de identificar os personagens. O único que diferenciava era o tirador da folia que como me lembrei do Zé Barba, que tocava uma sanfona, já nos últimos anos, apareceu com um acordeon bem simples de madrepérola vermelha desbotado. O que nos interessava era a farra, a cantoria, as danças e os meneios.

Tempo bom. A folia “sabia reconhecer o seu público” e mantinha-se dentro de seus limites territoriais e sociais. Apesar de minha família viver no meio pobre, era respeitada cultural e  intelectualmente. Em bom latim, Sapientia longe preestat divitiis, acaba-se o haver mas fica o saber. Com entusiasmo e alegria, meu pai mandava convidá-los a vir até a nossa casa e a se apresentar no terreiro calçado de tijolos que havia junto da varanda ou dentro da sala quando estava chovendo. Todos nós gostávamos de ouvir a cantoria.

E depois que passava a folia, eu e meus irmãos nos juntávamos a alguns meninos da vizinhança e fazíamos nossas máscaras e nossos instrumentos. Ainda me lembro de um ruivinho chamado Zé Lúcio que tinha uma grande destreza para dançar e bater com os cabos de vassouras que usávamos como instrumentos das lutas. Umas poucas vezes, arriscamos a nos apresentar em algumas casas de vizinhos amigos. E ganhamos uns poucos trocados e algo para comer. Apesar da racionalidade pela vida afora, o que ficou na minha memória foi a rara beleza dessa festa.

Além disso, relembro e até canto sem perceber alguns versos que me parecem ainda preservados de geração em geração por tradição oral. (“santos reis vem visitar, quem é de bom coração, Deus lhe dê eterna glória, na sua feliz mansão”)

A Folia de Reis, ainda hoje mantém-se viva nas manifestações folclóricas de muitas regiões do país, especialmente nas cidades mineiras da Região de Bocaiuva.

No município de Muqui, estado do Espírito Santo, acontece desde 1950 o maior encontro nacional de Folia de Reis, reunindo quase uma centena grupos de foliões também dos estados vizinhos do Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo. Ficam os versos:

“Senhora dona da casa, vai chegando a folia
Vem beijar a nossa bandeira e escutar a cantoria
Vem beijar a nossa bandeira e escutar a cantoria, ai ai ai !

Senhora dona da casa, se não for muito custoso
Vem abrir a sua porta que nós viemos de pouso
Vem abrir a sua porta que nós viemos de pouso ai ai ai !

Nosso corpo quer descanso nós precisamos dum canto
Nossa arma quem vigia é o divino Espírito Santo
Nossa arma quem vigia é o divino Espírito Santo ai ai ai !

Senhora dona da casa, a folia vai saindo
Fica com Deus nosso pai e a proteção do divino
Fica com Deus nosso pai e a proteção do divino ai ai ai!”

Comentários
  • alba dutra 1438 dias atrás

    Muito bom Sebastião Verly. Adorei as lendas em torno da continuidade da tradição! 🙂

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