Hoje dia 16 de setembro, às 22 horas, quase no final de mais uma noite de aulas, percebo mais uma vez o cansaço dos estudantes do curso de Gestão da Produção Industrial. A maior parte dos meus alunos neste curso vem direto do ”chão da fábrica” para a faculdade. Desde a aula anterior me chamou atenção o semblante de um aluno que conheço desde o início do ano e que agora está visivelmente abatido. Aproximei-me e perguntei:
– Você parece cansado, é o calor?
Ele me respondeu rapidamente:
– Professora, estou disposto a pagar e bem para quem tiver tempo para me vender.
A resposta provocou um debate sobre o tempo e a sociedade atual, tempo e o mundo do trabalho, principalmente o trabalho na indústria. Prometi levar o curta metragem “Vão dos Buracos”, que fala da vida em um local muito remoto e preservado no Norte de Minas para eles assistirem.
Mas também me vieram as memórias de Candeias, uma comunidade na Serra do Cipó. E ai as palavras foram passando para o texto…..
….Candeias…..
À poeira da estrada e ao calor juntou-se a demora em chegar. A distância era pequena, seriam menos de 30km de estrada de terra. Mas não nos alertaram sobre as condições em que ela se encontrava. Ainda era o mês de outubro e as chuvas já provocavam estragos. Será que íamos chegar? O motorista do velho táxi parecia já estar acostumado com a situação. Minha filha mais nova que era a guia também não estava tão impressionada, mas também, com seu espírito andarilho… Tive dificuldade de entender a maneira de viver que ela escolheu. Para mim, adulta e racional, ela tinha devaneios que seriam passageiros. Ela chegava com seus amigos naquelas comunidades, violão, tambor, faziam as “oficinas” com as crianças, a troco de quê, pensava eu? Mas quando ela gravou seu primeiro CD próprio vi que a inspiração, os ritmos, vinham daquelas crianças, daquelas comunidades, libertando a musicalidade enclausurada.
Minha mente tagarela ia formulando comentários e opiniões. Acho que na verdade, há anos esta estrada está abandonada. E quem mora lá, como vive? Se precisam vir à cidade, alguém passa mal, as mulheres grávidas, como nascem as crianças? Há um silêncio entre nós e olhares demonstram um certo mau humor. Sede e vontade de fazer um lanche. Me pergunto porque é que eu decidi acompanhar esses jovens neste passeio improvisado? Pela ausência de qualquer meio de comunicação nem sabíamos se a casa do padre, o único lugar para ficar, estaria desocupada. O motorista conseguia vencer as pedras, os buracos e o carro vencia a altitude. O calor e a poeira provocavam um suor incômodo. “Respira fundo e relaxa”, mentalizava eu! Este lugar é o fim do mundo, ou melhor está fora do mundo… remoíam meus pensamentos.
Finalmente alguém disse que já estávamos chegando. Mais uns 20 minutos e chegamos ao povoado de apenas uma rua e poucas casas. Todos saíam ou ficavam nas janelas e acenavam para nos cumprimentar. Acabamos de subir a rua e paramos na capela. Do alto olhei ao redor e avistei as serras em volta. Por instantes, esqueci a sede, o apetite, o calor. Espanto diante desta indescritível paisagem, que me encantou. E eu que no caminho cheguei a pensar que devia ser um lugar esquecido por Deus e agora sinto que foi esquecido pelos homens e pelo chamado progresso. A luz elétrica foi inaugurada há menos de um ano. Só agora a intrusa da TV chegou nos lares. Já fui sentindo um pulsar e um ritmo diferente, que acalmava meu ser. A casa do padre estava ocupada, mas só até à noite. Deixamos nossas coisas na casa de uma senhora do lugar. Ela nos ofereceu água e café. Conversamos, e enquanto aguardávamos a casa ficar livre, fomos caminhar e refrescamos o corpo num rio próximo. Quando ocupamos a casa tivemos que fazer uma boa faxina. Com a chegada da luz no local, um casal, filhos de moradores, montou um armazém que nos quebrou o galho: comprei cebola, ovos caipira e na casa do lado, farinha de mandioca da roça. Fiz a melhor e mais gostosa farofa que já comi na vida… Final de tarde, início de noite e quase todos os moradores vieram nos visitar. Para as crianças levamos lápis de cor e papel e logo a oficina de artes começou. A luz acabou. Conseguimos um banco grande e colocamos na rua por que a casa era pequena, não cabia todo mundo. Tocou-se violão e cantigas. Fomos dormir e apesar da extrema simplicidade de tudo, foi um sono profundo e reparador.
No outro dia visitei e conversei com vários moradores do lugar. E duas prosas ficaram gravadas na minha memória e até hoje me intrigam.
Eu comentei com duas moradoras:
– Mas este lugar é lindo! Aqui vocês tem uma paisagem que não é comum, de uma beleza rara!
Respondeu-me Dona Eva:
– Você acha? Eu não vejo assim não. Deve ser porque me acostumei. Sempre vivi aqui.
-Nunca saiu?
-Só para consultar, quando tive doente.
-Mas é … com quantas coisas nos acostumamos e deixamos de olhar e ver… E eu pensava no meu cotidiano e por quantos lugares passava sem nada ver. E completei:
— É como no casamento, se acostuma e um não consegue mais ver e olhar o outro. Lembrei em silêncio de uma música, “Valsinha” do Chico Buarque, que diz do quanto que uma mudança no olhar é mágica … “Um dia ele chegou tão diferente do seu jeito de sempre chegar, olhou-a dum jeito muito mais quente do que sempre costumava olhar…”
A Dona Eva me trouxe de volta:
-Aqui, sabe, Sêo Labatu, ele nunca saiu daqui. Até a consulta que ele tem hoje, eles é que vêm aqui. Coitado, eles agora quer que ele usa sapato ou chinelo.
Depois fui conversar com Seu Labatu, o rei da Marujada que insistia que a gente viesse para a festa em Setembro. Os pés muito inchados. E vi que para ele o mundo não era muito grande, acabava detrás daquelas serras!
E voltei a pensar no lugar. O que é o lugar? Para quem vive ali todos os dias e poucas vezes ou nunca saiu, o significado é um. Para nós que chegamos da cidade metropolitana, de fumaça, muito barulho e poluição, que já visitamos várias cidades e lugares e temos até uma certa noção do tamanho do nosso planeta, aquele canto do mundo tem outro sentido.
– Olha eu trouxe este cacho de banana pra vocês.
De novo a demonstração sincera de hospitalidade… Daí observei o prédio da escola. É, lá tem a igrejinha, o cemitério e a escola, prédio precisando de reforma, pintura. Aliás ali precisa de muito… Já estou pensando em políticas públicas, soluções para problemas. Antes eu devia calar e ver o que se tem ali.
Agora vou de novo à casa da Dona Maria. A vizinha quer vender o terreno abaixo do cemitério e nos contou. Dona Maria é uma negra idosa muito bonita com os olhos esverdeados de um brilho expressivo. Devagar, sem pressa, falou das melhorias que fez na casa, dos filhos e netos que não moram mais aqui, mas vêm visitá-la. Queriam que ela fosse morar em Belo Horizonte, mas ela nunca se interessou. Foi lá duas vezes e cansou muito, muitos carros e perigos. Aí chega a outra vizinha:
– Dona Maria, que dia que não passa este de hoje! Eu já fiz tudo que tinha que fazer. Limpei minha casa toda, fiz o almoço, lavei e passei roupa, até buscar lenha eu já busquei hoje. E ainda tá o sol assim rachando.
– É mesmo. Hoje tá assim.
Eu escutei este diálogo e não acreditei. Nossa, eu corro o dia todo e sempre faltam horas para fazer o que preciso!
Que tempo é este? Desde que cheguei senti um choque. Foi como se mudasse totalmente de sintonia. E nestes poucos dias, apenas três, fui entrando noutro ritmo. Agora diante desta conversa eu compreendi que o tempo aqui passa mais devagar mesmo, a vida é mais lenta. E isto se revela no jeito de olhar, falar e até de andar das pessoas.
E este lugar com suas serras e sua gente me encantou e ficou guardado no meu coração. E sempre que me deparo e percebo o absurdo da falta de tempo, da rotina automática, da minha cegueira no dia a dia, eu me lembro de Candeias, de seus moradores e seu maior tesouro: o tempo!
Comentários
MUITO BOM. ÓTIMO. SALVEI-O PARA LER MAIS VEZES, A OBSERVAÇÃO É PERFEITA. TEM SENSIBILIDADE, ALMA, TÃO AUSENTE NAQUELES QUE SE DEIXAM VENCER PELA VELOCIDADE A QUE ESTÃO SUBMETIDOS OS METROPOLITANOS E QUASE TODOS QUE O AVANÇO TECNOLÓGICO ENVOLVEU. TENHO UM EXCELENTE ARTIGO QUE ANALISA OS DIAS ATUAIS SOB O ASPECTO DO TEMPO: “TIME TO DO EVERYTHING,EXCEPT THINK” DA REVISTA NEWSWEEK: http://www.newsweek.com/id/79934 .
Antonio Utsch – BH
Só com a leitura do texto eu já me sentí mais leve e mais tranquila, só me imaginando num lugar desses, onde o tempo é tão diferente. Obrigada, Sânia.
Será que você realmente precisa ir tão longe para achar tempo ?
Será que que não há um pedacinho qualquer de tempo desperdiçado em meio ao corre corre da sua rotina ?
Relaxe, pare, pense e procure.
Com certeza existe um hora extra que você pode deixar de fazer essa semana, ninguém vai te demitir se voltar uns minutos mais tarde do almoço, seu carro vai aguentar se ficar mais alguns dias até ir ao lava jato….
E é assim, não dizem por ai que de grão em grão a galinha enche o papo ? Passa a ser uma questão de escolha, organizando-se melhor, perceberá que no seu dia ainda tem um tempinho livre pra você.
Ou vai esperar que venha de outro lugar, um grupo de pessoas e digam pra você como o mundo que lhe rodeia é bom, e como seu tempo é preciso ?
Muito legal! Bom para refletir.
Como estou precisando deste tesouro!
Existem 2 lugares bem perto de BH onde ele pode ser encontrado: em Roças Novas, ali garrado em Caeté, e em Piedade do Paraopeba.
Mas acho que o tesouro não é só o tempo. Eles nem chegam a observar “quanta coisa existe de que não precisamos para ser felizes”.
Abs,
Fernando.