Escutando com o coração

Publicado por Sânia Campos 11 de janeiro de 2010

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Como as crianças pensam e sentem o mundo?

Apesar de cada um de nós, hoje adultos, um dia ter sido criança, é impressionante como nos esquecemos das experiências, sentimentos, medos e percepções que vivemos na infância. Isto se confirma quando observamos a relação da maioria dos adultos com as crianças. A pressão das tarefas, das responsabilidades, do cumprimento de papéis e a luta pela sobrevivência, presentes no cotidiano dos adultos, podem ser usados para justificar, mas não explicam os equívocos observados e que se repetem principalmente no cenário escolar, nas famílias, espaços que se propõem a educar.

Num projeto de formação de educadores da escola fundamental foi proposto que os participantes, na maioria professoras, mulheres e mães, tentassem resgatar e escrevessem um memorial sobre o tempo de suas infâncias, principalmente a entrada na escola e os primeiros anos. Uma proposta simples deflagrou um processo intenso em cada uma delas, que ao revisitarem e relatarem suas experiências, puderam perceber que nas suas salas de aulas reproduzem padrões, discursos e atitudes que muitas vezes tinham sido difíceis e em alguns casos bastante traumáticas na história de vida destas mulheres. Porque tendemos a reproduzir e não a questionar o sentido e o significado de nossa prática?

“A minha professora primária não me permitiu sair para ir ao banheiro fora do horário e eu não consegui controlar. Isto foi motivo de gozação dos colegas e eu me senti numa situação vexatória, sem defesa”. “A minha professora repetiu várias vezes que eu não ia conseguir aprender …”. Relatos e mais relatos. Não é nosso objetivo aprofundá-los aqui, mas sim nos lembrar de como é necessário, no ato de educar, se colocar no lugar do outro. Ou melhor, tentar escutar o outro, compreender seu ponto de vista. No caso da relação com a criança, é fundamental saber de que não se trata de um adulto em miniatura, mas de um ser com uma forma peculiar e própria de compreender e sentir o mundo. Não se trata de subestimar a capacidade de aprender e observar das crianças, infantilizá-las de modo a tratá-las como não-capazes, como se fossem “um vir a ser”. É comum o adulto nem escutar e nem responder às perguntas das crianças. Como é importante prestar atenção no que as crianças estão nos dizendo com suas brincadeiras, seu “faz de conta”!

Outro dia observava uma mãe que levou duas filhas pequenas, uma em torno de 6 anos e a outra entre dois e três anos, no shopping e enquanto esperava numa fila de banco, se irritava e gritava com as crianças, ameaçando a maior. O que as crianças faziam? O que qualquer criança normal e saudável faria: explorar o espaço e com curiosidade. Criavam brincadeiras utilizando os recursos disponíveis como, por exemplo andar seguindo as linhas desenhadas no chão. Claro que a mãe tinha que se cuidar para não perdê-las de vista, mas se eu me proponho a levar duas crianças para qualquer espaço e lugar, é de se esperar que elas não vão querer ficar quietinhas e paradas, a não ser  que estivessem com algum problema de saúde. E, portanto, observei que aqueles gritos e ameaças não faziam nenhum sentido para a menina.

A filha de uma amiga minha foi estudar numa escola perto de casa, que era na área rural da cidade. Tinha oito anos e foi cursar a segunda série. Fora criada desde pequena em contato com a terra, plantas e bichos e ao mesmo tempo cercada de adultos que a escutavam, contavam histórias, e por isso era bastante sensível e observadora. A escola estava sendo para ela um desafio e tinha dificuldade de compreender as lógicas e rituais. Naquela nova escola, ela indagava: ”Por que a professora tem que gritar tanto com a gente?”. Muitos se acostumam, mas ela não deu conta de adaptar-se a esta situação. Ainda bem! Temos mil exemplos de como nos equivocamos diariamente no trato com as crianças. É humano. Mas podemos tentar melhorar, acertar mais. E um exercício que proponho é o de tentar acessar nossa memória e resgatarmos sentimentos e emoções que vivemos na infância, principalmente na relação com os adultos. Talvez isto seja mais complexo do que parece, porque entraremos em contato com as raízes de muitos dos nossos medos e não suportaremos sozinhos a dor e o sofrimento. Muitas daquelas professoras, de quem falei no início deste texto, sentiram depois a necessidade de um trabalho terapêutico mais profundo. E certamente este processo provoca mudanças de olhares e práticas.

Acredito que a maioria dos pais e educadores sonham em fazer o melhor possível para as crianças. Mas só intenções não bastam. Temos que nos preparar e, principalmente, desenvolver em nós o que queremos ensinar: espírito de pesquisa e curiosidade, sensibilidade e criatividade, respeito à natureza e a todos os seres vivos, serenidade e amor.

E parafraseando Guimarães Rosa “Mestre não é quem ensina, mas quem de repente aprende”. Então, com humildade, vamos reeducar nosso olhar e aprender com as crianças, escutando com o coração.

Comentários
  • Elisa – Betim 5302 dias atrás

    Sania, obrigada por me compreender, pois são poucos…
    Beijinhos

    Elisa

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