Maria da Cruz e o Motim dos Sertões – parte II
(continuação da parte I)
O povoamento dos Sertões Gerais
A partir do final do século XVII os caminhos da Bahia para as Minas, aos poucos foram sendo ocupados por roças, fazendas de gado e pequenos povoados. Pelos idos de 1707 aparece outro personagem importante, Antônio Gonçalves Figueira, que era, juntamente com Matias Cardoso, da Bandeira de Fernão Dias, seduzido pela fertilidade do Sertão Norte-mineiro, e na esperança de conquistar riquezas ali se fixaram, tornando-se colonizadores, arregimentando índios e construindo fazendas, cujas sedes foram com o tempo se tornando arraiais e depois cidades.
Antônio Gonçalves Figueira obteve a sesmaria que constituiu a fazenda chamada de Montes Claros, situada nas cabeceiras do Rio Verde Grande pela margem esquerda, onde foram surgindo aglomerações e povoados, entre eles o próspero Arraial de Formigas, que depois passou a se chamar Arraial de Nossa Senhora da Conceição e São José de Formigas, Vila de Montes Claros de Formigas e por fim cidade de Montes Claros, hoje a capital do norte mineiro, com 420 mil habitantes segundo estimativa do IBGE.
Antecedentes da Revolta
Até então, os mineradores pagavam o quinto, imposto que consistia na quinta parte do ouro encontrado. Por não ser área mineradora, o Sertão dos Gerais sempre havia sido isento do quinto. Os sertanejos recolhiam apenas os dízimos, 10% sobre a produção da terra, e as “contagens”, pagas nas passagens, as alfândegas da época. O governo decidiu mudar esse sistema de tributação. Os sertanejos também passariam a recolher uma certa quantidade de ouro. A taxação “incidia de forma mais contundente sobre os pobres do que sobre os ricos, já que os escravos pagavam a mesma quantia”, independentemente dos resultados da extração do ouro, explicam as historiadoras.
O conflito fez eclodir um dos maiores e mais violentos movimentos de sedição da recém criada capitania de Minas Gerais, que consistiu de dois ataques armados a São Romão. Os rebeldes foram posteriormente denunciados por ações bárbaras pelo sertão afora, como assassinatos, estupros, atos de vandalismo, incêndio de fazendas e outras desordens até ocupar a cidade.
O primeiro motim eclodiu em 22 de março de 1736, no Arraial de Capela das Almas, Barra do Guaicuí, quando os moradores liderados por Antônio Tinoco de Barcelos expulsaram o Ouvidor da localidade após perceberem que ele estava na região para implantar o abusivo sistema de cobrança de impostos.
O povoado de Formiga de Montes Claros foi mais um ponto de organização, de onde muito provavelmente tenha partido em princípios de maio daquele ano, um grupo que vai se juntar a outros conjurados que partiram dos núcleos de aglomerados do Brejo São Caetano, Nhandutiba, Japuré, hoje distritos de Manga, sob o comando do religioso Padre Antônio Mendes Santiago, mentor ideológico do conflito, para ocupar a Vila Risonha de Santo Antônio da Manga de São Romão, subsede do governo da regional.
O segundo movimento iniciou-se em princípios de maio no sítio de Montes Claros, junto ao Rio Verde Grande. Em julho, os amotinados entraram no Arraial de São Romão em um total de cerca de 900 homens, uns a pé, outros a cavalo, com “mais de 500 arcos e flechas”, ou seja índios arregimentados para o confronto. Os relatos posteriores indicam que o movimento rebelde foi se dividindo quanto a seus objetivos e que as forças militares acabaram por cercar São Romão, render os amotinados e capturar os líderes.
O desfecho do Motim dos Sertões
Entretanto sem identificar os verdadeiros responsáveis pelos excessos, Maria da Cruz e seu filho, o comerciante Pedro Cardoso, cujo foco eram os abusivos impostos, foram responsabilizados como chefes das revoltas. Vários participantes da contestação conseguiram escapar, mas Maria da Cruz e seu filho Pedro Cardoso foram presos e transferidos para Vila Rica.
Maria da Cruz foi posteriormente transferida para uma fortaleza no Rio de Janeiro e, após um ano, para Salvador. Julgados pelo Tribunal de Relação em 1738 foram condenados ao degredo em Moçambique e a pagar uma pesada multa. Pedro Cardoso nunca retornou da África, mas a destemida Maria da Cruz, obteve, antes do embarque, o perdão do rei dom João V de Portugal e, alguns anos depois, pôde voltar para casa, onde faleceu em 1760. Acredita-se que houve forte influência da Igreja Católica para a concessão de seu perdão, visto que ela tinha parentesco com o Vigário-geral de Salvador além de ter dois filhos padres.
A coroa portuguesa quis evitar execuções como ocorreram nas revoltas de Vila Rica e Pitangui, por isso desaforaram os julgamentos para Salvador. O que mais preocupou o governador de Minas Gerais, o fidalgo português Martinho de Mendonça de Pina e Proença, e seu sucessor Gomes Freire de Andrade em suas correspondências é que esta revolta conseguiu unir todos os segmentos sociais, desde os mais abastados aos escravos e surpreendentemente os índios que demonstraram boa disposição para os combates.
Ainda sobre Maria da Cruz
Maria da Cruz dedicou sua vida à instrução das pessoas, com noções de higiene, direitos e cidadania, música, construindo várias escolas. Instalou teares de algodão, oficinas de couro, tendas de ferreiro e carpintaria para qualificar os jovens. Acolhia órfãos, enfermos e inválidos, promovia o casamento de amasiados e mantinha o culto à capela.
Seu dinamismo e sua generosidade para proteger e instruir os desfavorecidos, no século XVIII, quando faltavam ações efetivas de políticas públicas, transformaram-na em heroína do sertão sanfranciscano. A população barranqueira do Velho Chico reverencia sua memória. As terras que formavam Pedras de Baixo são, atualmente, o próspero município de Pedras de Maria da Cruz.
Um réquiem tardio foi criado por Diogo de Vasconcellos: “Na história de Minas, há mulheres que se imortalizaram, fosse pela sua beleza ou por seus talentos, fosse também por martírio sacrossanto. Mas diga-nos agora se alguma foi, mais do que esta, digna de memória em nossos fastos. O tranquilo esquecimento, a causa melhor da morte, apagou seu nome conservado apenas no velho e obscuro arraial, à beira do grande rio”.
Comentários
Como é falha a nossa história, em não nos revelar acontecimentos e personagens como estes.
Maria da Cruz não deveria ser condenada ao olvido.
Talvez seja personagem nada secundária no cenário das lutas feministas!
Que bom que Padre João Delço a desvende para nós.