Paulinho, te escrevo esta como ex-companheiro de cela no DOPS de São Paulo e do Presídio Tiradentes, e também como companheiro de militância no Partido dos Trabalhadores.
Passamos juntos por momentos dramáticos de saber que companheiros estavam sendo mortos na tortura, e que outros que estavam presos seriam executados, e que a “grande mídia” iria noticiar mais uma “tentativa de fuga” ou um “tiroteio na resistência à prisão” para justificar aquelas mortes. Vivíamos momentos dramáticos quando, depois de passada a fase inicial de tortura, comum a todos nós, já numa situação mais relaxada no presídio, onde tínhamos acesso a jornais e rádio, o carcereiro simplesmente chegava na porta da cela, gritava o nosso nome e tínhamos cinco minutos para juntar numa sacola nossas poucas roupas pois uma escolta nos aguardava na portaria do presídio, e simplesmente não sabíamos para onde iam nos levar. Também vivemos aquela época de ouvir os gritos de companheiros nas salas de tortura no 3º andar da OBAN até que os gritos cessavam e concluíamos que aquele companheiro fora libertado de seu corpo e não mais seria supliciado.
Tudo isso nos marcou a memória e nos temperou o espírito. Hoje nossos filhos, sobrinhos, até netos, bem como seus amigos e colegas, ao tomar conhecimento destas histórias passam a nos tratar de uma forma dupla e confusa, ora como vítimas indefesas, ora como heróis de uma resistência popular e democrática. Nessa situação eu sempre procurei desmistificar essa dupla e incoerente imagem, e o faço sempre que posso junto às pessoas que não viveram aquele período. Nós não éramos vítimas inocentes que foram apanhadas aleatoriamente nas ruas, éramos militantes conscientes, e pretendíamos fazer uma revolução derrotando as forças que estavam no governo, os militares, a super exploração do capital e o imperialismo arrogante que nos tratava como seu quintal. Tínhamos consciência que havíamos assumido uma postura de confronto, e que estávamos sujeitos a passar por torturas, prisões, a sermos assassinados e a ver nossos companheiros também passando por este massacre nas prisões. Portanto, vítimas inocentes não éramos.
Nem tampouco heróis. Éramos jovens que, ao vermos a cidadania do povo castrada, as injustiças sociais, as arbitrariedades de quem manipulava o aparelho repressivo do estado, usando-o inclusive em causa própria, e por não aceitarmos que nosso país fosse colocado numa posição subalterna por potências internacionais, não vimos outro caminho senão aquele. Fomos levados à luta pelas circunstâncias de um processo de radicalização, mais que pela índole pessoal. A parte da juventude de nossa época que não se engajou nesta luta acabou indo se refugiar nas drogas, ou simplesmente caiu em depressão e foi incapaz de qualquer projeto de vida, fora a outra parte que “entrou para o sistema”, vendeu suas almas e arrastou suas existências tentando sobreviver com uns trocados aqui e outros ali. No extremo, outros, tornaram-se colaboradores do regime e foram arrumar emprego fácil, como os de dedo-duro e bate-pau, pois não encontraram melhores opções de sobrevivência. São essas figuras extremamente medíocres que muitos defendem que sejam julgadas porque mataram, porque assassinaram, porque torturaram, porque estupraram. São, no entanto, Paulinho, apenas a ponta do iceberg. Você há de concordar que são os culpados menos conscientes de tudo o que ocorria naquele momento em nosso país. Os que insistem em punir os bate-paus não estão deixando de fora aqueles que davam as ordens, que planejavam, apesar de nunca terem entrado numa câmara de tortura? E aqueles que legislavam, os que ficavam na imprensa dando cobertura? E aqueles que foram signatários do AI-5, plenamente conscientes de todas as suas conseqüências, como é o caso do Delfim Neto, que fala para todos que é amigo do Lula? Ou do Jarbas Passarinho que escreve nos jornais ironizando o que considera revanchismo contra os militares, simplesmente porque eles venceram a guerra, e que nós, recalcados, teimamos em não admitir a derrota? Você não percebe que eles criam uma cortina de fumaça para se protegerem? Você não acha que estes pequenos bate-paus acabaram virando bois de piranha?
Companheiro, você faz um bom trabalho à frente da Secretaria de Direitos Humanos, mas não deveria sair antes de jogar uma luz sobre os desaparecidos, permitindo que suas famílias saibam onde estão seus corpos, ou em que circunstâncias eles desapareceram, até mesmo se foram jogados no mar e aonde. Tenho certeza que o ministro Nelson Jobim e os comandantes militares podem colaborar para te dar acesso a estas informações. Mas para isso é preciso que você ajude a sociedade brasileira a entender que o importante é que tais fatos não mais ocorram. Para isso precisamos ter a grandeza da visão histórica. Punir torturadores neste momento não resolve nada, o que precisamos hoje é de resgatar a memória no contexto histórico, e se alguém tiver que ser punido são aqueles que hoje estão aí impunes e buscando a glória de terem saído vencedores de uma guerra, na qual o que faziam de fato era entregar o país para as potências estrangeiras, castrando a cidadania, a cultura e a auto-confiança do povo brasileiro. Pois bem, se eles nos derrotaram pelas armas de sua ditadura sustentada por seus patrões estrangeiros, nós os derrotamos pelo voto popular democrático, e estamos através do presidente Lula ajudando o povo brasileiro a encontrar seu lugar na história, sua cidadania, sua auto-estima. Creio que o ministro Jobim e os atuais comandantes militares também fazem parte desta conquista, e queria terminar dizendo que você, que acompanha o presidente Lula há tanto tempo, não deve sair do governo agora. Você ainda tem a importante missão de trazer as informações sobre os desaparecidos, para os familiares e pelo legado que representam para nosso povo e para a humanidade.
Quanto aos que foram responsáveis conscientes pela implantação da ditadura, a condenação será pelo esclarecimento dos fatos históricos. No entanto temos que saber escapar das armadilhas das cortinas de fumaça que eles criam, nos lançando contra os bate-paus que são meros bois de piranha, como o touro raivoso, que investe com toda sua força contra o pano por não conseguir enxergar o toureiro.
Comentários
Milton,
emocionante o texto. parabéns. a palavra é uma arma poderosa. tomara q possamos seguir usando-a para evitar q pessoas como essas q vc menciona tenham exito em encobrir com a fumaça do esquecimento o nosso passado. “o que foi feito é preciso conhecer, para melhor prosseguir”, como disse o poeta. viva o brasil. viva o povo brasileiro. harley.
Prezado Milton,
Acabo de ler, pela primeira vez, um artigo seu. Embora tenhamos quase sempre tido pensamentos ideológicos opostos, não posso deixar de concordar com muitos de seus pensamentos exarados no seu artigo, principalmente com a sua abordagem pragmática quanto ao problema de se desejar vingança contra os torturadores. Como você implicitamente bem coloca, ações assim podem não atingir o alvo certo, e além disso não trará qualquer benefício para as partes, principalmente para as famílias que gostariam de saber que fim tiveram seus entes queridos. Nos meus anos de faculdade, iniciados em 1964, tive um colega de sala — José Carlos Novais da Mata Machado — na Faculdade de Direito da UFMG, que foi um dos desaparecidos.
Seu artigo dá-nos o testemunho de alguém que viveu na carne infames torturas que só podem ter sido perpetradas por seres de espíritos inferiores, talvez no afã de querer agradar a seus superiores. Superiores esses, que, talvez nem realmente quisessem este resultado final. Por isso, concordo plenamente com você e acho que neste momento — muito mais do que a ânsia de vingança — artigos como o seu atingem muito mais o objetivos de sua causa, mostrando uma realidade que muitos desconhecem, ao descrever as agruras dos ambientes de tortura, contribuindo assim para que tais fatos jamais voltem a ocorrer.
MILTON, apesar dos anos que não nos vemos, éramos crianças, ( nem sei se você se lembra ), sempre soube de sua trajetória como militante politico, e de seus ideais, hoje espero, vitoriosos e consagrados.
Hoje vive-se num país livre e este texto nos faz repensar aquela época negra em que tudo acontecia e não tinhamos conhecimento de nada. Esta memória deve mesmo ser sempre resgatada afim de que as gerações futuras saibam e lutem sempre por um pais livre e democrático.
Um abraço.
Grijalva.
Caro Mílton,
É muito bom para mim ler depoimentos, como o seu, dessa época tenebrosa pela qual o Brasil passou. Embora nossa diferença de idade não seja grande, em 1968 era o suficiente para nos deixar em situações opostas. Eu com 10 anos de idade, inocente e protegida na pequena Eugenópolis e você e tantos outros jovens, idealistas e lutadores tentando derrubar um regime!
Depreendi do seu texto que apesar das dores, do sofrimento que experimentou, tudo ficou no passado. Não senti em suas palavras o menor traço de rancor, o que, no meu julgamento, é muito bom! O rancor é um buraco negro e profundo, onde muitas pessoas que participaram da luta naquela época ficaram. Recentemente o César Benjamin foi protagonista de um episódio lamentável, e é exemplo disso.
No entanto, ouso não concordar com a totalidade de sua proposta ao Secretário de Direitos Humanos. Se vocês não eram “vítimas inocentes”, os torturadores também não eram “inocentes”. Sabiam exatamente o que estavam fazendo e porquê. Digo ainda mais, tinham prazer em fazê-lo! Onde estão eles? QUEM eram eles? O Brasil tem que conhecê-los, saber os seus nomes, o que fizeram, a mando de quem! Se vão ser condenados e presos é outra história (embora eu ache que devessem), mas têm que ser conhecidos! Algum deles pode estar ao meu lado e eu não saber…
Penso que os torturadores são “o fio da meada”, o começo para que TUDO o que ficou encoberto daquela época apareça: quem se beneficiou, quem financiou (ou se recusou a), quem apoiou, quem se omitiu, etc.
Tenho convicção (como diz o Lula), que elegeremos uma jovem, idealista e lutadora de 1968, Presidente da República em 2010. Nós, o povo brasileiro, temos o direito de saber a importância dela ( e de todos vocês que lutaram) para estarmos hoje vivendo uma Democracia e estarmos publicamente nos comunicando sobre esse assunto.
Um abraço.
Laura
Caro Milton,
texto realmente bem escrito e esclarecedor. Quando jovem e tinha ingressado no curso de Historia tinha essa visão romântica que você critica. COm o tempo aprendi a admirar você e todos que lutaram no pós-64 de forma mais realística. Realmente o trabalho do Vanucchi é bom, como no caso do dossiê Direito à Memória. Precisamos de textos como o teu, para manter mais do que a consciência, o espírito crítico vivo num povo tão passivo como esse do século XXI, especialmente os jovens. Deixo aqui um abraço, de um antigo conhecido e certamente um novo admirador dos seus textos.