Entro no consultório com os exames debaixo do braço, sorrio pra secretária e pisco querendo dizer “hoje eu acertei, né?”. Dois dias antes, eu tinha baixado lá no dia errado, em meio a minha distração crônica e o meu problema de memória recente…
Duas semanas antes, no laboratório, dia de fazer um procedimento, chego toda orgulhosa por lembrar de levar os exames anteriores pra mostrar pro médico. Sento diante da atendente, entrego meu RG e ela diz: pedido médico. Fico com aquela cara de pastel e digo: “moça, esqueci”. Ela: “então vai ter que remarcar”. Tinha demorado semanas pra conseguir o horário, já tinha desmarcado uma vez por causa da adaptação do Tom na escolinha e não dava pra perder mais uma vez. Eu: “moça, por favor, meu problema é justamente de memória (hahaha!), posso dar um jeito de pedir pra me mandarem o pedido pelo celular?”. Conversa vai, conversa vem, consegui que me enviassem uma foto do pedido e ela na maior boa vontade aceitou. Pendências burocráticas vencidas, exame feito. Ufa!
Voltando à sala de recepção da minha médica, sento na cadeira com o computador no colo já prevendo que ia esperar. Muito. Enquanto duas senhoras falam sem parar sobre os tipos mais raros de não sei que doença, eu tento redigir os objetivos específicos do projeto de pesquisa no Baixo São Francisco. Elas são chamadas pra entrar na sala da médica, cinco minutos de silêncio e concentração e chega um cara simpático com uma bebê mais simpática ainda. Ela sorri pra mim sem parar e aí esqueço metodologia, cronogramas e prazos e fecho o computador. Começo a conversar com o cara, que é candango mas mora metade do tempo na Colômbia e metade na Bélgica. Ele fala do companheiro dele e comenta sobre os desafios da criação da filha, de 11 meses, que brinca amarradona com as bonecas de pano do consultório. Comenta que é a primeira e que eles querem mais três, de preferência gêmeos, porque querem que a família cresça logo. Fala em inseminação e adoção. Fico de cara com a coragem de dois pais de criar esse tanto de menino, e ainda com a amorosidade, o cuidado e a presença de espírito com que ele se relaciona com a pequena. Conversamos sobre mil assuntos, consulta já atrasada quase uma hora e meia, damos risadas e então uma das senhoras sai de dentro da sala da médica. Vê a bebê e pergunta: “que linda, é sua filha?”, e ele diz “é sim!”. A pergunta que eu tava esperando vem: “e a mãe dela, cadê?”. Me dá aquele frio na espinha, pensando no que ia se seguir… Ele responde no maior alto astral: “ela tem dois papais!”. E nisso a senhora (com mais de 70 anos, com certeza), observando o jeito dele com a menina, responde: “É mesmo? Muito linda a sua filha! Quantas pessoas não tem esse amor pra dar aos filhos!”. E os dois embalam no maior papo sobre a vida em Bogotá, lugares interessantes, galerias de arte, dicas de feiras de rua… Me dá aquele alívio de ver que tudo correu bem. A secretária me chama, “sua vez”.
Aquele momento me deixou refletindo sobre muita coisa. A ansiedade por pensar na hipótese de que aquele cara incrível pudesse ser hostilizado pela senhora me deixou quase paralisada diante da cena na recepção do consultório. Fiquei imaginando o que tanta gente passa cotidianamente lidando com o medo da discriminação. Seja qual for. E como isso molda nossa forma de estar no mundo…
Pra minha alegria, essa história teve happy end 🙂
Saí pensando que o Tom ia adorar ter uma amiga como a Lea Maria, e que eu adoraria ter um amigo como ele.
Comentários
Pelo nivel de detalhamento da história não estou vendo problema de memória aí
Você não pegou o telefone dele? Peça à secretária