“Gandhi os chamava “filhos de Deus”, mas a realidade mostra que é como se fossem filhos de um Deus menor”, José Kalapura
Por mais de vinte anos acompanho a luta, a labuta, a perseverança, a garra, a dignidade e a honradez dos catadores de materiais recicláveis, ou seria dos catadores de lixo? Catariam recicláveis se fossem papéis, papelões, metais, plásticos, limpos e dispostos separadamente para a coleta, mas catam o lixo que chega nos lixões e nos galpões sujos de triagem, misturado com matéria orgânica, comida, papéis higiênicos usados, etc. Do volume que manuseiam cerca de 40% tem que ser aterrado.
Na maioria das vezes os catadores e catadoras passam despercebidos nos lixões, nos galpões e nas ruas, o que pode até facilitar para “roubarem” do lixo o que poderá ter algum valor comercial.
Catam, transportam e vendem. Catam como? Como transportam? E como comercializam? Como os “intocáveis” na Índia que carregam sobre as cabeças as fezes e urinas acumuladas por outros, devido a sua posição social, os catadores brasileiros são muitas vezes obrigados a viverem nas ruas, em terrenos baldios, nos lixões, a trabalharem em galpões em sua grande maioria insalubres, com iluminação precária, instalações sanitárias inadequadas, de forma que uma simples visita da vigilância sanitária os interditaria.
Qual a diferença da situação atual e a de 20 anos atrás? Hoje os catadores possuem uma organização invejável, um movimento nacional, lideranças que dialogam diretamente com os mais altos escalões do governo federal, têm a simpatia, o compromisso e a luta do presidente Lula na sua inserção, mas continuam em sua grande maioria como antes, sem as condições mínimas adequadas para o trabalho que executam.
Os intocáveis da Índia constituem uma faixa da população condenada desde o nascimento a cuidar dos serviços mais repugnantes da sociedade. Sua principal tarefa é cuidar da limpeza de estradas e latrinas. No Brasil, os catadores, muitos deles filhos de catadores, no sol, na chuva, em ruas movimentadas e em locais ermos transportam seus carrinhos de mão, ou puxam sacos repletos de materiais recicláveis, usando sua força física com a tração humana. Com esse trabalho precário contribuíram para transformar o Brasil no campeão mundial em reciclagem de alumínio.
Há anos atrás no Rio de Janeiro, a Sociedade Protetora dos Animais entrou com uma ação contra a COMLURB por transportar lixo em favela no lombo de duas mulas que eram carinhosamente chamadas de Domitila e Dona Beija. O caso é que a Sociedade Protetora dos Homens e Mulheres coletores de materiais recicláveis estão a construir galpões inadequados e a entregar o lixo, mal separado, mal acondicionado, para serem garimpados em condições insalubres ou permitindo sua presença em lixões como o da Vila Estrutural, em Brasília, Capital da República Federativa do Brasil.
Portanto, da forma que está sendo conduzida, a coleta seletiva tem sido uma catástrofe, tanto em termos de seus resultados, como nas condições em que a mesma se realiza. Torna-se necessário uma revolução no processo até então implantado. Torna-se necessário içar a bandeira do respeito, da eficiência, da eficácia e, sobretudo da efetividade do serviço que é responsabilidade do poder público municipal. É do próprio movimento nacional dos catadores a afirmação publicada em boletim do IPEA em artigo sobre a crise financeira mundial: “quem mais sofreu com a crise foram os catadores de materiais recicláveis, a ponta de uma cadeia produtiva injusta, conhecida como cadeia produtiva suja – um sistema de produção que é sustentado pelo trabalho precarizado de catadores que exercem a atividade sem qualquer vínculo empregatício…….”. Eles vendem materiais recicláveis para ferros-velhos pequenos e médios, e até para redes de comércio de sucata. Além do trabalho em condições precárias, há casos de trabalhos análogos à escravidão, servidão por dívida, aluguel de carroças e trabalho infantil. São situações que violam os direitos humanos dos catadores, um dilema moral do setor da reciclagem que, no Brasil, apesar de ser considerado um dos maiores do mundo, ainda é mantido pela exploração destes trabalhadores. A indústria da reciclagem no Brasil é abastecida por bolsões de miséria espalhados por todo o país”.
Pois bem, com retiradas mensais de até R$ 120,00 por mês, pode-se realmente comparar o trabalho de alguns cooperativados com o trabalho escravo. Pagar pelos serviços que exercem os catadores, como preconiza a Lei de Saneamento, salários justos e adequados, ademais de propiciar que tenham a renda adicional da venda dos produtos da reciclagem, não é suficiente. Há que se investir em formação, capacitação, tecnologias e um sistema operacional adequado. Há que se realizar um trabalho diário de esclarecimento aos cidadãos sobre a necessidade do consumo sustentável, da separação entre os resíduos úmidos e os secos, e da disponibilização para a coleta de forma diferenciada. Há, portanto que caminhar no sentido de aproveitar as oportunidades e os ganhos obtidos até agora, mas há que se avançar muito mais, com a prestação de um serviço público essencial que não explore a mão de obra dos catadores.
A coleta seletiva deve ser implantada de forma mecanizada, feita por catadores uniformizados, remunerados, com equipamentos de proteção individual, os galpões devem ser adequados com equipamentos de segurança, extintores de incêndio, ventilação natural, iluminação adequada, refeitórios, armários individuais para cada trabalhador, com o número de banheiros e sanitários previstos na legislação. Há que se contratar profissionais que estudem e implantem o fluxo da entrada e da saída dos materiais de forma racional. Há que se ter roteiros de coleta seletiva fixos com dias e horários definidos – da mesma forma que a coleta convencional – ter regularidade, pontualidade e eficiência. Conveniar com os catadores para a execução da coleta seletiva e os deixar à mercê da própria sorte, com apoio eventual ou esporádico do poder público, sem um efetivo processo de capacitação, sem uma definição clara e objetiva do papel de catadores e do poder público, é fazer o discurso fácil da inclusão sem a real inserção. É necessário, portanto, uma força-tarefa para o fortalecimento institucional dos órgãos públicos gestores da limpeza urbana.
A argumentação de que a coleta porta a porta dos resíduos secos só se viabiliza do ponto de vista econômico com a tração humana feita pelo catador é um aposta no atraso e na exploração da mão de obra pelo próprio poder público municipal. Fosse essa proposta de trabalho em condições tão penosas feita por empresários do setor, estariam todos a gritar.
É preciso acreditar na cidadania do catador, do cidadão, e na gestão pública de qualidade. Há que se definir do ponto de vista legal, as regras e fiscalizar para que os munícipes as cumpram. Não se pode brincar de fazer coleta seletiva improvisada e sim implantar um serviço público de qualidade, universalizado, gerador de trabalho e renda dignos, mobilizador da sociedade para a tarefa civilizatória do consumo sustentável e do respeito ao meio ambiente. Serão necessários projetos que almejem resultados concretos, com ações públicas vigorosas e saltar dos 3 para 60 quilos de resíduos reaproveitados por habitante/ano no Brasil.
Neste sentido, deve-se apagar de uma vez por todas a marca da exploração que escraviza homens e mulheres, e, ao invés, lhes fornecer opções dignas de trabalho e renda compatível com a nobre, antiga e moderna tarefa que executam e que tantos benefícios traz para o País.
Comentários
Oi Kátia, gostei muito do seu artigo e fiquei com algumas questões, acredito que algumas são mais dirigidas para a Sra. Aurora da SLU:
Os catadores organizados de Belo Horizonte que triam material da coleta seletiva recebem pelo serviço prestado como você aponta no seu artigo? Como funciona o trabalho da SLU com as associações de catadores? Participam ou acompanham mobilização da coleta seletiva no município? Há previsão e um planejamento para que estas associações como a Asmare, Coopersoli Barreiro e outras passem a fazer a coleta também? Qual o planejamento da SLU para a coleta seletiva em Belo Horizonte, haverá ampliação em 2011? Como posso solicitar a implantação do serviço de coleta seletiva no meu bairro?
Feliz 2011.
Kátia,
obrigada por mais uma contribuição séria para a reflexão sobre os programas de coleta seletiva. Temos como grande desafio eliminar um conceito de que a tração humana decorre de um “vinculo afetivo” entre o catador e seu carrinho.
Aqui em BH, continuamos insistindo em contribuir para a melhoria das condições de trabalho dos catadores.
Kátia,
Excelente texto. Você mostrou aqui o que a maioria das pessoas desconhecem.Como é dificil a vida desta parte da população que trabalha como profissionais invisíveis ou desconhecidos. São dignos de todo o nosso respeito, pois afinal são os que, com seu suado trabalho, praticamente sem reconhecimento de quase todos, são os que mais contribuem para a sustentabilidade do nosso eco-sistema. Está faltando politica social e econômica em nosso país.
Parabéns.
Um abraço.
Grijalva
Seguimos compartiendo, uno de los problemas complicados de nuestras sociedades de consumo. Saludos
Daniel.
Durante a Gestão da Engenheira Heliana Kátia, na SLU em Belo Horizonte, eu, como funcionário, trabalhei dentro do Galpão dos Catadores.
Naquele tempo, a inserção social dos catadores era coisa séria.
Verly