(Continuação da parte VIII)
Parte IX
A “dissonância cognitiva” é um conceito utilizado na psicologia para se referir à tensão ou desconforto que uma pessoa experimenta ao ter duas crenças, atitudes ou comportamentos que são contraditórios ou incompatíveis com suas crenças preexistentes.
Desde 1970, o governo dos Estados Unidos, por meio da Drug Enforcement Administration, DEA, classificou a canabis como uma droga da Lista I, sob a Lei de Substâncias Controladas. Isso significa que é considerada como tendo um alto potencial de abuso e não tendo um uso medicinal aceito. Em 1980, Ronald Reagan, sendo presidente, afirmou publicamente: “líderes da pesquisa médica estão chegando à conclusão de que a maconha é provavelmente a droga mais perigosa, com danos permanentes para a saúde”.
Acredito que, atualmente, para a maioria das pessoas, está bastante claro que essas afirmações do ex-presidente Reagan são falsas. A canabis está longe de ser a droga mais perigosa, de causar danos permanentes ou não ter usos medicinais. Durante mais de 50 anos, a DEA tem negado os usos medicinais da canabis e a considera tão perigosa quanto a heroína. Eles têm mentido por mais de meio século ou, na melhor das hipóteses, estão equivocados.
Essa narrativa produziu uma percepção negativa em grande parte da população mundial, gerando uma crença bastante generalizada que poderíamos resumir em quatro palavras: “a canabis é ruim”.
A principal dificuldade que temos atualmente para divulgar os benefícios do cânhamo é justamente essa tensão ou desconforto, essa dissonância cognitiva gerada ao apontar aspectos positivos da canabis, provocada pelas décadas de desinformação que mencionamos.
Para entender melhor essa dificuldade, falaremos de outro conceito psicológico conhecido como “viés de confirmação”, que se refere à tendência das pessoas em favorecer, buscar, interpretar e lembrar informações que confirmam suas crenças ou hipóteses preexistentes, enquanto ignoram ou desconsideram informações que as contradizem.
Pensemos no caso de Galileu Galilei. A ciência e a religião de sua época tinham a crença de que a Terra era o centro do universo. Quando ele compartilhou suas observações e propôs um modelo diferente, astrônomos, filósofos e teólogos seus contemporâneos rejeitaram suas descobertas. Esse viés os levou a buscar e valorizar apenas as informações que respaldavam suas crenças preexistentes sobre o modelo geocêntrico, ignorando ou desconsiderando as evidências.
Por exemplo, Galileu convidou o filósofo Cesare Cremonini para observar algumas de suas descobertas astronômicas através de seu telescópio, mas ele se recusou argumentando que preferia confiar na cosmologia de Aristóteles, que havia dominado o pensamento científico durante séculos. É um excelente exemplo histórico de dissonância cognitiva e viés de confirmação.
O desconforto que Galileu gerou foi bastante grande. Em 1616, a Igreja Católica declarou o heliocentrismo “formalmente herético”. Apesar disso, Galileu continuou defendendo suas ideias e foi acusado de contradizer a proibição de ensinar o heliocentrismo. Em 1633 foi condenado por heresia e passou sua vida em prisão domiciliar até sua morte. Tudo isso por afirmar que a Terra não era o centro do universo.
Voltando ao tema da canabis, apesar de ter sido utilizada como fonte de fibra, alimento e medicina durante milênios, a campanha de satanização das últimas nove décadas foi tão potente e eficaz que nos encontramos diante de um enorme desafio ao debater sobre o assunto.
Graças à crença de que a canabis é essencialmente ruim, muitas pessoas têm dificuldade em se abrir à possibilidade de que, pelo contrário, a canabis bem utilizada pode ter benefícios tanto para a saúde humana quanto ambiental.
Tomemos o uso nutricional como exemplo. Sua semente não tem nenhum efeito psicoativo que permita alegar algum tipo de inconveniente para o consumo de crianças e adultos. Seu alto teor de proteínas, fibras e gorduras saudáveis a torna um excelente alimento para consumo humano. Sim, são sementes de maconha e seu consumo regular na dieta tem um impacto positivo na saúde humana.
Lamentavelmente não é tão simples explicar por que é um alimento tão valioso. Conceitos bioquímicos como aminoácidos essenciais ou ácidos graxos essenciais são necessários para compreender a verdadeira dimensão do absurdo do senso comum descartar essa semente como alimento. O mesmo acontece ao querer explicar os mecanismos de ação da planta quando administrada como medicamento. O sistema endocanabinoide, do qual escrevi em um artigo anterior, é um complexo e importante sistema biológico presente em todos os mamíferos, encarregado de regular funções fisiológicas tão variadas como apetite, sono, inflamação, dor e resposta imunológica.
A classificação da DEA negando afirmando os usos médicos da canabis não só contradiz textos milenares da medicina tradicional chinesa, egípcia ou ayurvédica, como também contradiz os resultados das pesquisas científicas das últimas décadas que demonstram sua eficácia e segurança no tratamento de diversas patologias.
O convite é para que cada pessoa deixe de lado seus preconceitos e abra sua mente para analisar as evidências científicas disponíveis. Fomos enganados e só depende de nós abrir os olhos e decidir “olhar pelo telescópio”.
Continua na parte X: https://www.metro.org.br/felipe-arellano/canabis-recurso-natural-renovavel-parte-x/
Comentários
O uso medicinal da canabis, se tornará tão natural daqui para frente, que visivelmente se dismistificará toda e qualquer atitude preconceituosa sobre o seu uso.
Negar a canabis enquanto remédio é basicamente retrocesso do ponto de vista terapeutico, nos tratamentos que envolvem controle comportamentais, principalmente da agressividade e de demência,ou doenças degenerativas!