Em Pompéu, de 1942 a 1960, quando lá vivi, o hábito de dar esmola era bastante comum. Havia a chamada Conferência de São Vicente de Paula que cuidava de arrecadar dinheiro e mantimentos para fornecer aos pobres cadastrados na CSVP. Para que os cidadãos se eximissem de dar esmolas diretamente aos mendigos, a CVSP fornecia uma plaquinha esmaltada que era afixada na frente da casa do contribuinte, o que indicava que aquela família já contribuía para a instituição filantrópica. Com o tempo foi construída a humilde Vila São Vicente de Paula.
Registrávamos a sagrada presença da dona Carlota e Mariinha, que ficavam horas de conversa com meu pai e, às vezes, também com minha mãe, e, ainda nós, as crianças éramos agraciados com os casos que sempre tinham para contar. Carlota era cega dos dois olhos, creio que de nascença e Mariinha era apenas pobre e velha. Mariinha, quase sempre, guiava a Carlota. Quando compareciam em horários diferentes, Carlota era guiada por uma garota, negra como a cega. Nós, sempre nos afeiçoávamos à negrinha que era geralmente muito simpática e comunicativa.
Pedir e dar esmola parecia normal. Era esperada a visita e a conversa sempre amena e até engraçada na maioria das vezes. A Carlota sempre tinha uma piada naturalmente ocorrida com ela como cega. Dificilmente pedia “uma esmolinha pelo amor de Deus” mas sempre lembrava de desejar que Deus pagasse pelo adjutório recebido.
Em nossa casa, mesmo com nossas dificuldades, meu pai conseguia oferecer um trocadinho por menor que fosse a algumas pedintes que nos visitavam todos os sábados. Muitas vezes, nossa contribuição era compartilhar o almoço com as mendigas.
No ano de 1957, sem que soubéssemos bem o fim de ambas, elas desapareceram. Talvez tenham se recolhido aos cômodos da CSVP que ampliou o número de quartinhos para acolher a pobreza. Naquele conjunto que se tornou bastante valorizado, até a Igreja Católica cismou de fazer uma capela no terreno.
Bom, aqui a Carlota e Mariinha deixam também a minha narrativa.
No dia a dia, com uma sacola vermelha, era comum receber, principalmente nas casas marcadas com a plaquinha da CSVP, a visita do Concesso que arrecadava rotineiramente a contribuição da CVSP. O Concesso, funcionário público estadual, do Departamento de Estradas de Rodagem, tinha tempo para recolher também adjutórios, como ele dizia, para o enterro dos indigentes.
Já no ano 1957, quando comecei a trabalhar na agência local do Banco Comércio, tínhamos por obrigação oferecer um trocado semanal, ao José que permanecia – diariamente – numa cadeira de rodas na porta do estabelecimento com um copinho de lata que fazia tilintar as moedas recebidas.
Havia mais alguns que apareciam de vez em quando e a gente sempre coletava algum dinheiro ali entre os colegas bancários para doar aos pedintes ocasionais.
Depois de 1960, já residindo e trabalhando na capital, mantive o hábito de retornar à minha cidade quase semanalmente e tive contato com uma esmoler muito especial. Quem viajava nos ônibus que faziam a linha Pompéu-Belo Horizonte, via Pará de Minas (boas lembranças), logo que saíamos dos limites da cidade de Pompéu, na entrada do Município de Papagaio, o trocador avisava: “esmola para a velha”. Comumente, a maioria tinha um trocado que o trocador juntava e, quando chegava diante do casebre onde vivia uma velha entrevada, ele dava uma corridinha até lá dentro deixava o dinheiro em cima de um caixote que servia de mesinha e voltava correndo para suas obrigações. Havia uma crença tácita de que aquela esmola obtinha de Deus a garantia de uma boa viagem. E não tínhamos noticias de acidentes. Os motoristas e trocadores sentiam-se compensados pelo ato de bondade.
Também, naquela época, apareceram alguns mendigos forasteiros que logo foram assimilados pela população. Um deles era o “Sêo” Raimundo, um homem forte guiado por um garoto que se dizia seu filho.
Na casa de minhas irmãs, quatro solteironas, era costume tomar banho com a janela do quarto de banho que dava para a horta aberta para entrar claridade. E na lateral da casa, passando pela horta, havia um portão que os mais chegados usavam para ir diretamente à cozinha quando precisavam.
Certo dia, o “Sêo” Raimundo chamou na frente da casa das minhas irmãs e como ninguém atendeu resolveu entrar pelo portão, justo na hora em que a Lia, uma das minhas irmãs, estava tomando banho.
Quando ele parou na frente da janela, a minha irmã ficou irritada e aos gritos lhe repreendeu.
Ele, para riso posterior, disse:
– Dona Lia, fique tranquila por que eu sou cego.
A Lia contava o caso e terminava em gargalhadas.