As manifestações de rua e alguns atos terroristas motivados por caricaturas do profeta Maomé parecem apontar para a difícil convivência entre a democracia quimicamente pura e o sentimento do sagrado.
Por um lado, sabe-se que a Revolução é declaradamente iconoclasta. Para ser implantada, consideram-se como simples efeitos colaterais a decapitação da rainha ou a prisão do Papa. Para atingir os objetivos da Revolução e a marcha de sua motoniveladora, nenhum obstáculo deve ser respeitado. São registros da história recente.
Por outro lado, o “fiel” – esse religioso herdeiro de tradições seculares – considera como “sagrados”, isto é, “separados” e merecedores de respeito e veneração, certos lugares, certos profetas, certos livros. Tal veneração justifica o derramamento de sangue, a começar pelo próprio sangue. Por isso existem os mártires…
Dentro de uma sociedade que se pretende democrática, como as repúblicas do Ocidente, coexistem variados grupos sociais, várias etnias, diferentes religiões. Este pluralismo vem-se acentuando sempre mais com o crescimento das comunicações e das migrações. A visível dificuldade de integração das diferenças e a falta de respeito pelo “diferente” certamente manifesta que o ideal democrático ainda não foi realizado em parte alguma do planeta.
A situação tende a se agravar toda vez que o “fiel” de determinada ala religiosa – sunita ou xiita, conservador ou progressista, presidencialista ou parlamentarista – tenta impor aos demais a sua própria visão, como se fosse o único caminho possível. Quem se manifesta contrário torna-se alvo de acusações, campanhas difamatórias ou coquetéis molotov.
Vale recordar que a implantação da República, mesmo onde ela ocorreu sem a ajuda de canhões, sempre foi acompanhada de um processo de “limpeza” dos traços que pareciam antirrepublicanos. Como exemplo, os nomes das cidades brasileiras: Barão de Vassouras passou a Vassouras; Marquês de Valença passou a Valença. A onda atingiu também o substrato religioso: Nossa Senhora do Carmo foi reduzida a Carmo, simplesmente; Santo Antonio da Guarda Velha da Volta Redonda resumiu-se em Volta Redonda. Os gurus republicanos sentiam-se mal com o incenso e as ladainhas. Seriam os mesmos que pretendem erradicar o crucifixo dos lugares públicos…
Desde o Séc. XVIII, acentua-se o processo conhecido como secularização ou, em outros termos, a perda do sentido do sagrado. Sintomas do processo podem ser a proibição de tocar os sinos das igrejas, a supressão do ensino religioso na escola pública, a transformação de templos em fábricas (União Soviética) ou em danceterias (Holanda), a utilização de embriões humanos como cobaias, o casamento de dois indivíduos do mesmo sexo, entre muitos outros.
Cabe perguntar: seria a própria Democracia uma nova “religião”? Tem sua Bíblia, a Constituição. Tem seus sacerdotes, os congressistas. Pratica-se igualmente a simonia: são os dirigentes corruptos. Tem seus dizimistas: aqueles que, periodicamente, depositam seu voto virtual nas urnas eletrônicas, validando todo o processo em nome da triste divindade: o povo.
O sonho democrático resvala ladeira abaixo em nome do mais extremado individualismo. Invoco o direito de ser eu mesmo, do meu jeito, doa a quem doer. É assim, na base do impulso pessoal, que o evangelista de TV quebra a chutes uma imagem de Nossa Senhora; foi assim que o chargista dinamarquês resolveu zombar do profeta. Sou democrata, faço o que bem entendo e não devo satisfações a ninguém. Não há limites para minha ação.
Conhecido poema de Almeida Garret mostrava o “pescador da barca bela” que se aventurava mar adentro, sem levar em conta os sinais de tempestade: “Não vês que a última estrela / no céu nublado se vela? / Colhe a vela, ó pescador!”
Não só os poetas e os ditadores costumam ceder a esta hybris – a tentação da falta de medida – quando decidem levar adiante seus projetos. Herodes e Pilatos, Hitler e Stalin servem de exemplo. Também o pessoal da mídia, ao invocar uma irrestrita liberdade de expressão, mesmo pisando sobre séculos de sagrado, parece ignorar que nenhuma democracia pode perdurar quando a pessoa humana não é respeitada em suas diferenças, mas apenas serve de motivo para zombaria e deboche.