Ela era terna e doce. Um olhar que sorria, apesar de lhe faltar boa quantidade de dentes. Morava numa casinha aos fundos do antigo Motor, em que o acesso se dava pelo beco. Aliás, de qualquer beco de Itacambira, se chegava aos outros. Caminho certo e silencioso, naqueles tempos. Hoje os becos viraram ruas, ganharam nome, casas, trânsito, tudo. Mas, nos tempos de Leocádia, os becos eram cantos silenciosos de uma cidade silenciosa. Leocádia era uma moradora silenciosa, e passaria quase despercebida, não fosse as muitas companhias que ela levava consigo, pra onde fosse.
Os cachorros. Sempre teve seus cães de estimação, ou eles a tinham. Tratava-os como filhos que eram. Era estranho de se ver. Mas, ainda assim, lindo e marcante. Mal sabia eu que me tornaria uma Leocádia, um dia. O que mais me marcou a memória era o fato de Leocádia carregar os cachorros filhotes, e sempre tinha deles, num saco plástico transparente, que ela trazia à cabeça, como coroa. Quando perguntada porque os levava assim, ela se justificava que não podia deixar os animaizinhos sozinhos, senão a meninada os mataria.
Sim. Infelizmente, era verdade. Não poucas vezes, já a vi reclamando da molecada entrar pelo Beco do Motor, atirar pedras contra ela e seus cãezinhos, atingindo telhado e o que mais conseguissem, e correrem pra rua, rindo-se da proeza. Não. Aquilo nunca teve graça. Não pra mim. Muito menos pra coitada da Leocádia.
Nunca conheci nenhuma outra Leocádia, a não ser nossa Loca de Itacambira. Pesquisando sobre o nome, descobri que houve uma Leocádia em Toledo, na Espanha, no Século IV, cuja vida foi dedicada ao Cristianismo e por isso foi perseguida e morreu na masmorra. Leocádia foi reconhecida como virgem e mártir, tornando-se santa. Seus festejos são comemorados no dia 09 de Dezembro. Santa Leocádia teve três igrejas construídas em sua homenagem, uma na cidade onde nasceu, outra na cidade onde ficou presa até sua morte, e outra onde foi enterrada, Toledo.
Sobre nossa Leocádia, soube por terceiros que, quando de sua morte, no cortejo do caixão até o cemitério, uma matilha a acompanhou, desde a porta da igreja até o efetivo enterro.
Leocádia tornou-se nossa espécie de São Francisco local. Ainda hoje, deparamo-nos com Leocádias e Leocádios por aí, a zelar pelos animais, a não resistir quando encontra um bichinho na rua, a dar comida, água ou um carinho, que seja.
Santa herança! Santa Leocádia!
Comentários
Que maravilha,linda memória. Todos a conheciam, até mesmo aqueles que só passavam por itacambira, viu ou ouviu falar de Leocádia. Lembro-me dela na casa de Tio Silvio, e tinha sim, um olhar que sorria, como vc bem detalhou.
Parabéns Elisane por suscitar em nós essa lembrança tão boa.
Parabéns Elis Caldeira, pela memoria de Leocádia! A conheci na minha adolescência,era uma jovem ingênua e muito humilde por isso era explorada sexualmente por vários homens pois aproveitavam se de sua vulnerabilidade. Mas ela era andarilha.
Lembro dela jovem pois me mudei de Itacambira nunca mais a vi.
Linda história! Diziam também q ela teve um filho mas esse filho veio a falecer, no entanto ela entrou em uma depressão pós parto, contudo dedicava todo seu amor aos cachorros! Lembrei de Zé gato também será que vem mais narrativas aí? Aguardo ansiosa
Parabéns Elis Caldeira, pela memoria de Leocádia! A conheci na minha adolescência, era uma jovem ingênua e muito humilde por isso era explorada sexualmente por vários homens, pois aproveitavam se de sua vulnerabilidade. Mas ela era andarilha.
Lembro dela jovem pois me mudei de Itacambira nunca mais a vi.
Elis, bela crônica… Loca como eu a chamava .
Loca tem muitas historias….
Parabéns Elis