Na Praça da Liberdade, a liberdade de viajar por mares e terras desconhecidas. Quem pegou carona no Vagão Cultural que “traz o universo de Fernando Sabino até você” pode continuar viajando através da literatura mineira, mas o Governo de Minas já mandou pôr o trem nos trilhos. E o maquinista deu a partida. Ouvidos atentos podem ainda escutar o apito na curva.
Hoje, o que chama a atenção do público é uma gigantesca urna ancestral, objeto que faz parte da tradição milenar chinesa. A criação é do artista chinês Zhang Huan, dono de uma linguagem surreal. E é uma das quatro peças que compõem a exposição BHÁsia.
O espaço da Praça está apinhado de caminhantes e curiosos. Desvio meus passos antes da sétima volta e leio na placa de vidro ao lado da escultura gigantesca: “(…) Na China, existe a tradição milenar de se fazer em vida urnas onde serão depositados os bens afetivos de uma pessoa quando ela morrer. Esses bens são enterrados junto com o corpo, para que o acompanhem na última viagem de quem os guardou com tanto carinho. O público poderá ingressar na urna composta por 185 placas de minério de ferro – a maior riqueza do subsolo de Belo Horizonte – e um piso de placas de vidro iluminadas.”
Olho, observo, contemplo. Quase entro em meditação e êxtase. Dou a volta e paro diante da porta de entrada no alto da escada de dois degraus. Entro? Não entro? Um pai ajuda a filha subir os degraus; equilibra a garotinha até adentrar a porta. E fica olhando. Só olhando. Do lado de fora. A menina ingressa sozinha para a viagem ao desconhecido. Tão serena, como se entrasse na sua casinha de brinquedo. De mãos vazias. Sem levar seus bens afetivos. Que objetos de afeto levaria uma criança em sua urna? A chupeta? O travesseirinho? Os chocalhos? Os guizos? A bola? A boneca? O carrinho? Ou o raio de sol que escorrega pela persiana entreaberta e é sua fita amarela no berço? Imagino meus bebês, que ingressaram ainda ao romper da aurora, nessa última viagem. Que objetos de afeto teriam levado, se tivessem nascido na China? No Brasil, não temos essa tradição. Só depositei beijos, bem-me-quer, amor-perfeito, lírios e pétalas de rosas, colhidas no meu jardim. No jardim que cultivamos com todo o carinho e zelo, para atrair borboletas e passarinhos e encher de voo a vida que sonhamos para eles.
A criança explora o espaço. E volta meio desapontada. Só tinha luz. Uma luz clara. O pai, cá de baixo, estende os braços; pega a filhinha no degrau de cima; aperta contra o peito. Sem palavra. E voa com ela para longe da Ásia, para longe do outro mundo, como se fugisse do anjo que vem guiar as criancinhas na viagem para o céu.
Uma moça morena e esbelta – cabelos longos, lisos e negros; boca desenhada com lápis e batom red, vestido vermelho flutuante, de um ombro só; sandália de salto alto, abotoada no tornozelo se aproxima, acompanhada de um jovem de calça jeans e camiseta preta – corrente grossa de prata, piercing na orelha. Fotografam com seus celulares. Fotografam a urna e a placa informativa ao lado. Sem ler o que está escrito. Outro jovem casal se une ao primeiro. Pelo jeito, são estudantes de arte. Parecem ter os mesmos interesses e objetivos: um trabalho de classe talvez. Não sei. Espero que entrem. Para pegar carona com meus companheiros de viagem. E saber mais dos jovens esculturais – de sua arte, seus mundos, seus medos e segredos. E conhecer os seus bens afetivos.
Olham para a urna. Entreolham-se. Comentam com voz grave e sorriso enigmático. Depois ficam em silêncio. Cada um com seus pensamentos secretos. De repente, a moça de formas esculturais e vestido vermelho flutuante puxa o rapaz de camiseta preta, e arrasta para fora de si. Com seus passos de modelo na passarela, se afastam ligeiro para longe da Ásia, para longe da China, para longe do outro mundo. E vão namorar na liberdade da praça.
Olho para trás, para os lados, ver se encontro um companheiro de viagem. Só passantes. Tomo coragem. Visto a alma da criança que acabou de sair. E ingresso para esta viagem que terei de fazer sozinha. Levo o carrinho de bois que meu pai fez para mim, quando iniciei os estudos de Folclore; seu último trabalho, aos 84 anos de idade, como que fechando um ciclo. O primeiro foi seu primeiro brinquedo. Conta ele: “Tive o meu primeiro brinquedo, quando eu tinha oito anos: um carrinho de boi que eu mesmo fiz. Peguei uma casca de gameleira, fiz as rodinhas, pus a mesinha. Atrelei três juntas de bois de sabugo. Brinquei, brinquei. E deixei o carrinho pra lá. Os carreiros chegaram com os carros cheios de milho. Os carros passavam rente a parede. Fechei os olhos pra não ver passar em cima do meu. O Zé Paulo pulou do cabeçalho no chão. Parou os bois e empurrou meu carrinho para o lado. Fiquei devendo a ele obrigação pelo resto da vida. Acho que foi mais por isto que eu fiquei gostando dele.”
A urna, gigantesca. Tem espaço para todos os meus bens afetivos: o meu Caderninho do Tempo Perdido onde, no hiato entre o curso primário e o curso secundário, eu copiava poemas, frases e pensamentos de poetas e pensadores universais: “Ando à procura de espaço/para o desenho da vida.” (Cecília Meireles) “Deus! ó Deus! onde estás que não respondes?” (Castro Alves) “Por que da sua distância/Para a minha companhia/Não baixava aquela estrela?/Por que tão alta Luzia? (Manuel Bandeira); ”O rio atinge seus objetivos, porque aprendeu a contornar obstáculos.” (Lao-Tsé) “Um dia você aprende que não importa em quantos pedaços seu coração foi partido, o mundo não pára para que você o conserte.” (Wiliam Shakespeare) “A imaginação é mais importante que o conhecimento.” (Albert Einstein)
O meu diário – companheiro e confidente em altas madrugadas de abandono e solidão – barco na travessia de noites indormidas, de celibato e de clausura; todas as cartas de amor – barco, brisas, bálsamo e carícias no mar à deriva; o botão de rosa vermelha, oferta do Professor de História, meu padrinho de formatura; meus três livros de cabeceira: Terra dos Homens, de Saint-Éxupéry: “O que salva é dar um passo. Mais um passo. É sempre o mesmo passo que recomeça.”; O Profeta, de Kalil Gibran: “… da mesma forma que o amor vos coroa, assim ele vos crucifica.” (…) E não pensais que podeis dirigir o curso do amor, pois o amor, se vos achar dignos, determinará ele próprio o vosso curso.”; Estações da Ausência, do Poeta Paschoal Motta: “Com a pétala de teu nome, / nasce a rosa da manhã”; a cadeirinha que o Edimur, meu irmão mais velho, fez para a minha boneca. Meu irmão era o menino mais sabido e corajoso do mundo. Só ele sabia usar as ferramentas do meu pai, andar de bicicleta pneu balão me equilibrando de pé na garupa, fazer canoa de pita e navegar no açude me levando na proa, como Iara, a Mãe d’água; Os três barquinhos de papel, Santa Maria, Pinta e Niña, com que eu brincava na enxurrada e navegava com o Edmundo, meu irmão do meio, a quem eu chamava de Mundinho. Foi o Mundinho quem me iniciou nas grandes navegações – quem fez o meu primeiro barco e me ensinou a navegar, a lidar com as tempestades, monstros e dragões.
Com meu irmão no comando, naveguei em busca de terras desconhecidas. E aportei em “Porto Seguro”, com a Dona Inês, minha mãe, gritando da janela: “Sai da chuva, meninada!” Aprendi a amar o meu país, essa terra que “em se plantando, tudo dá.” Aprendi o gosto da aventura de viver.
Mais tarde, sozinha por córregos, rios e mares nunca dantes navegados, passei pelo cabo das tormentas, enfrentei monstros e dragões. E dobrei o cabo da Boa Esperança.
E mesmo abandonada pela tripulação, navegando num rio de lágrimas, em noites de tempestade, sem bússola e sem farol, com todas as estrelas apagadas, eu não deixei o barco afundar nem perdi o sonho de navegante. E segui cantando a canção dos argonautas: “navegar é preciso/viver não é preciso.”