Caminho na Praça da Liberdade. Na liberdade da praça. Respiro flores e trinado de passarinhos.
A água da fonte lava a alma e leva as mágoas, purificando o ar e o espírito; a dama-da-noite se veste de flores e exala um perfume doce e sensual; a brisa sopra cadentes rimas de amor.
Paro diante do Vagão Cultural que “traz o universo de Fernando Sabino até você.“ São 20 horas. O trem descansa na estação. Só amanhã a partir das 8, recebe os passageiros e continua a viagem comemorativa dos 90 anos do autor. Abro a bolsa, tiro a caneta e anoto no verso da conta do meu celular. Que venceu ontem. E eu esqueci de pagar.
“Escrevo sobre o que não sei para ficar sabendo.”
Uma voz feminina atrás de mim indaga:
─ Como será que eles trouxeram este trem até aqui? Como é que fizeram os trilhos? Será de verdade? Ou é de plástico? A senhora tá copiando… Bonito, né? Eu só tô lendo.
Fernando Sabino é escritor? Ele é daqui? Ainda é vivo? A senhora conhece ele? Tô vindo da Savassi. Eu trabalho lá. Numa confecção. Costureira. De noite, eu bordo. Até lá pra meia noite. Bordado com pedraria. Vestido de festa. Tô bordando um de noiva. Que eu peguei por fora. Todo dia, eu passo aqui, ficar em contato com a natureza antes de ir pra casa. A gente descansa. Eu gosto demais. Ficar olhando as flores, respirando o perfume. Olha a dama-da-noite! Adoro esse cheiro.
“Na Literatura, como na natureza, nada se cria, nada se perde: Tudo se transforma.”
Esse negócio de trem na Praça deve ser pra incentivar a leitura, né? Senhora vê: quanta coisa boa para os jovens. E tantos ficam mexendo com droga. Eu tenho um filho. Sou separada. Criei os filhos sozinha. Mas graças a Deus… Pergunto pra eles se… Respondem: “Ô, mãe, isso é coisa de perguntar? A droga só tem dois caminhos: do xadrez e do cemitério.” Ele tem um primo que mexe com isso, sabe? Tá na cadeia. Dentro de casa, eu não tenho esse problema não. Eu preciso largar é isso aqui. Cigarro eu larguei. Mas a cerveja… Todo dia, hora que eu saio do serviço, tenho que pegar uma latinha. Senhora também gosta? Ai, queria ser assim: não gostar desse gosto, não gostar do cheiro. Mas eu ainda vou libertar desse vício, se Deus quiser! E poder participar da Santa Ceia. É… Santa Ceia. Não sei qual é a religião da senhora. Mas em qualquer religião, é Santa Ceia. Tomar o corpo de Cristo… morro de vontade. Não posso. Tomo isso aqui, né? Como é que eu vou receber o corpo de Cristo? Hoje eu tô na maior ansiedade: meu filho tirou carteira. Já vai comprar a moto. Moto aqui em Belo Horizonte… Medo demais. Ele tem a cabeça boa. Mas não depende só do motoqueiro, né? Esse trânsito… Minha filha comprou foi carro. Ela é recepcionista. Trabalha à noite. Falo com ela: espera o dia acabar de amanhecer. Não vem de madrugada, não! Ela sai ali pelas seis horas. Passa aqui, oh, todo dia. Ai, tô na maior ansiedade. Olha! Senhora leu esta aqui?
“viver é uma questão de paciência.”
Olha esta árvore! Tá vendo lá em cima a casinha de João-de-barro? Como é que pode? Com o biquinho. Carrega barro e vai ajeitando até fazer uma casinha dessas. Fico lembrando de onde eu morava. Sou do interior. Tivemos uma vida difícil. Construímos nossa casa de pau-a-pique. Senhora já viu falar? A gente finca os paus assim roliços. Vai amarrando as varas com cipó. Depois vem com o barro; terra, areia e estrume de boi. Ajunta tudo e amassa até dar liga. Aí vai tacando as pelotas assim com as mãos e ajeitando até encher tudo. Barreado, vem com um reboco e passa por cima. De barro branco. A gente pega no buracão na beira dos corgos. Um barro fininho! Senhora conhece? E vai passando, ajeitando assim com as mãos. A parede fica lisinha. Depois, cobre com sapé. O chão também é de barro, do mesmo jeito das paredes. O fogão…
Eu gosto muito de viajar. Ano passado eu fui em Porto Seguro. De ônibus. Minha filha queria que eu fosse de avião. Mas eu gosto é de ônibus. Chão demais; 16 horas de viagem. Mas a gente passa em muitos lugares, fica conhecendo muita coisa.
“Todo mundo tem dois olhos para ver. Que coisa estranha. É preciso ver a realidade que se esconde além, onde a vista não alcança.”
Eu gosto de olhar. Passo aqui todo dia. Vou bebendo a minha cervejinha e olhando. Meus filhos falam que eu chego tarde em casa. Tô fazendo nada errado. O Senhor sabe. Gosto de olhar. A vida é tão bonita. Tanta coisa pra ver. Fico pensando: como é que jovens vão pras drogas? Não sabem olhar, né? Na viagem, eu vou olhando tudo. De repente, um lugarejo… As casinhas de pau-a-pique cobertas de sapé. Pensei que não tinha mais isso. Que eu nunca mais ia ver minha casinha de sapé. O ônibus passando; a chuva caindo; os cavalos amarrados assim do lado; pessoas na janela olhando a chuva cair. Voltei lá na infância… Tô com 56 anos. Ainda quero viver muito. Viajar. Ver tantas coisas bonitas. O ônibus, desses grandes de dois andares. O motorista fica no primeiro. São dois. Pra revezar. Mas todos dois ficam embaixo. No andar de cima comigo, as crianças. Tinha muita criança nessa viagem. Elas olham tudo, falam o tempo inteiro, descobrindo coisas: “Olha lá as vaquinhas! Que tanto! A casinha… cê viu?” Eles não conheciam. Bom demais viajar com criança. Senhora já viajou? Foi bom encontrar a senhora aqui. Prazer em conhecer. Como é mesmo o seu nome? O meu é Cida. Aparecida. Mas pode me chamar de Cida. Senhora copiou essa? Boa de escrever em camiseta.
“Olhar tudo como se fosse a primeira vez.”