As vozes conservadoras, os saudosos da Casa Grande, consideram o Bolsa Família um gasto social absurdo e inútil.
Para essas vozes é normal e justo que se salvem os bancos, que se dêem subsídios para usineiros, agricultores de modo geral, que se anistiem impostos das mais variadas naturezas. Mas, em se tratando de assegurar aos pobres, ou mais precisamente aos miseráveis, uma renda mínima independente da contribuição previdenciária, é algo condenável. E, até imoral, pois é um estímulo à vagabundagem. Os grandes problemas nacionais, desde a decadência da qualidade da escola pública, a precariedade dos serviços públicos de saúde e, sobretudo, o desemprego e o baixo desenvolvimento das forças produtivas devem-se ou se resolvem pelo Bolsa Família, panacéia do bem e do mal.
Criou-se no país um novo apartheid:
De um lado os mais de 12,4 milhões de famílias beneficiárias, o que corresponde a aproximadamente 50 milhões de brasileiros, que reelegeram o “pai dos pobres”, antes Getúlio e agora Lula, e alguns intelectuais que acham que não podem contrariar alguns ícones do PT. Do outro lado, os cânones neoliberais, políticos conservadores, viúvas de programas assistencialistas de cunho clientelista-fisiológico como tickets de leite, cestas básicas e congêneres. Programas, diga-se de passagem, que não são condenáveis per si como medidas emergenciais, mas pela forma como chegam ao beneficiário: como favor e não como direito, como moeda de troca eleitoral e não como estratégia de sobrevivência humana e promoção da cidadania.
Ainda, fazendo coro aos conservadores, há uma crítica difusa, preconceituosa, estreita, calcada numa visão ideológica de que lugar de “cuidar” de pobre não é na esfera da política pública nem na do direito, mas apenas na filantropia, benemerência e do salve-se quem puder. Neste coro estão também os que por convicções filosóficas acreditam que a pobreza é uma condição inerente à vida e a natureza humana de alguns, é claro!
Os programas de transferência de renda, as famigeradas “bolsas”, foram institucionalizados no âmbito federal no governo FHC. Experiências anteriores, no âmbito municipal e estadual e propostas que não deixaram de ser embrionárias no âmbito federal, durante o governo Itamar Franco, que lhe antecedeu, certamente inspiraram e impulsionaram as experiências vindouras.
O governo Itamar (1992-1993), impulsionado pela CNBB, muito na pessoa de Dom Luciano Mendes de Almeida, lança no âmbito do Ministério da Justiça, cujo titular à época era Mauricio Corrêa, um Pacote Anti-Violência. Dentre as ações ali previstas surge pela primeira vez a proposta de se dar bolsa de estudo, em forma de transferência de um percentual do salário mínimo para as famílias de meninos e meninas de rua que se afastassem das drogas e do crime. A proposta pioneira, focada prioritariamente no Rio de Janeiro, foi formulada por Pedro Demo, pesquisador do IPEA, professor da Universidade de Brasília – UnB, então Secretário Nacional de Direitos Humanos e Cidadania. Recebeu grande apoio da mídia e de segmentos progressistas do governo e lançou esta semente, inexoravelmente.
Em Campinas, ainda nos anos 80, o prefeito do PSDB, José Roberto Magalhães Teixeira, um mineiro alcunhado de Grama, foi de fato o pioneiro do Programa de Transferência de Renda. O programa da Prefeitura de Campinas era tão bem estruturado e articulado com outras ações de promoção social e abertura de múltiplas oportunidades, que não se podia dizer “de pronto” se o sucesso em termos de mudança do patamar da vida dos beneficiários se dava pelo subsidio econômico ou pelo conjunto articulado de ações que o mesmo assegurava, inclusive apoio psicossocial.
No âmbito estadual, coube ao Governador Cristóvam Buarque a vanguarda na criação do Bolsa Escola, como estratégia privilegiada para assegurar a permanência e o sucesso dos estudantes na escola, bem como tirar as crianças do trabalho infantil. Houve uma mudança de paradigma na educação no Distrito Federal que galgou índices de liderança nacional na avaliação do desempenho das escolas públicas de ensino fundamental.
O Programa do governo do PT no Distrito Federal ganhou escala, reconhecimento e ajuda internacional (UNICEF, UNESCO, OIT) e amplo apoio do Conselho da Comunidade Solidária, presidido pela primeira dama Ruth Cardoso.
Mas ali já se esboçavam as primeiras críticas ao caráter perverso do programa no que diz respeito ao esforço de emancipação das famílias beneficiárias. Contradições e desvios dos reais objetivos eram evidentes na prática controladora de agentes sociais que demonstravam no monitoramento do programa o compromisso secular de manutenção da cultura da pobreza. A permanência da pobreza é fundamental também no âmbito psicológico para expiar culpa e justificar uma prática arraigada na política e na burocracia. A pobreza é usada e controlada para fins alheios aos legítimos interesses dos pobres.
Na época da Copa do Mundo, em 1998, famílias que se esforçaram para comprar uma televisão acabaram sendo punidas por isto, perdendo a Bolsa Escola. Um aparelho de TV, um micro-ondas, evidenciavam um “sinal de riqueza” ou de gasto não programável aos objetivos do programa de transferência de renda. Alguns “espertos” mandaram a televisão para a casa do vizinho ou a esconderam para não perderem o subsídio. Sinais preocupantes de que alguma coisa estava errada geraram sussurros e insatisfações em parte do secretariado de Cristóvam e alguns nichos mais progressistas de política social.
Concomitante à experiência do DF, o governo federal teve na gestão FHC grandes experiências de transferência de renda. O primeiro nasce, ainda em 1995, com o Vale Cidadania para os meninos egressos do trabalho degradante das Carvoarias do Mato Grosso do Sul. Merecidos aplausos foram dados pela situação e oposição à cerimônia no Palácio do Planalto, onde o próprio presidente da república, ladeado pela primeira dama, se compromete a repassar R$ 50,00 para cada criança que deixasse o trabalho no carvão e fosse para a escola. Assim, se estruturou o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI) que inaugura junto com a transferência de renda a jornada educacional ampliada. Este programa contou com o amplo apoio da sociedade civil e foi ganhando os canaviais, os sisais, os mandiocais, enfim, percorrendo o mapa das piores formas de exploração do trabalho infantil no país e se transformou numa referência internacional de política pública exitosa no Brasil.
Nesse passo o Bolsa Escola ganha escala no Ministério da Educação, transformando-se em programa prioritário e estratégico, e o Ministério da Saúde cria o Bolsa Alimentação, como medida para o combate a desnutrição materno-infantil.
Não vamos aprofundar no mérito, nos limites e alcance dos programas de transferência de renda consolidados na era FHC. É inconteste que o Bolsa Escola contribuiu sobremaneira para a universalização do acesso ao ensino fundamental, embora não houvesse indicadores que demonstrassem o impacto do mesmo na qualidade da educação.
No governo FHC, notadamente no segundo mandato, evidenciou-se uma disputa interna de poder entre os ministérios setoriais responsáveis pelo financiamento e gestão das bolsas, bem como a superposição de benefícios de vários ministérios e até de outras iniciativas estaduais e municipais e do terceiro setor para o mesmo beneficiário.
Já, no próprio governo FHC, esboçava-se, em nível dos setores técnicos de formulação e acompanhamento das políticas sociais, uma consciência da necessidade de unificação dos programas.
Todavia, nas quase duas décadas da historicidade do programa não se evidenciam rupturas com a herança de reprodução e manutenção da pobreza que pululam nos mecanismos e critérios técnicos de gestão do programa, procedimentos que foram se revigorando no tempo e no espaço, em nome da justiça, do controle e do aprimoramento técnico, e até da racionalização de custos, e hoje se tornaram cristalizados e auto-imperativos.
É inegável que a unificação dos programas de transferência de renda no governo Lula foi um avanço administrativo e republicano. Pena que não caminhou no rumo da impessoalidade, na melhor concepção da burocracia weberiana, como foi o Funrural e o próprio BPC – Beneficio de Prestação Continuada previsto na Lei Orgânica da Assistência Social de 7/12/1993, a LOAS.
Hoje o Bolsa Família nem é mais da Benedita da Silva que assim o batizou e o unificou, e nem do Patrus Ananias que faz sua bem intencionada, mas equivocada gestão. O programa é do Lula e da Dilma, como seria de qualquer outro candidato à sucessão, pois se tornou antes de tudo moeda eleitoral como foram no passado os carros pipas para os políticos da antiga oligarquia do Nordeste.
Isto causa arrepios à cidadania! Rasgamos todos os livros e cadernos dos cursos de Serviço Social ou nos indignamos e propomos algo novo e conseqüente?
Comentários
Creio que a revisão do Bolsa Família será um dos assuntos mais importantes no início do Governo da Presidente Dilma Russef. No governo Lula ele tirou muita gente da fome, agora ele precisa colocar esta parte da população que estava na indigência em condições de trabalhar dignamente. O Bolsa Familia tirou essas familias da Classe E e colocou na Classe D. Agora é hora de promovê-las para a Classe C, tornando-os cidadãos que vivem do próprio trabalho. As preocupações da autora são todas nesta direção. Acho importantíssimo que a nova ministra do Desenvolvimento Social, Tereza Campelo tenha acesso a idéias como essa, pois a autora, Denise Paiva, cujo livro sobre o Governo Itamar tive oportunidade de ler conhece este programa desde o seu nascedouro no municipio de Campinas – SP. Que Deus ilumine a nova ministra.