Minha continência, general Lucena (1930-2017)

Publicado por Denise Paiva 28 de março de 2017
minha continência general lucena

minha continência general lucena

Faleceu no último domingo, 26/3/17, aos 87 anos, no Hospital Geral do Exército, no Rio de Janeiro, o general de exército Zenildo Gonzaga Zoroastro de Lucena. Ele deixa viúva, duas filhas e cinco netos.

Nascido em 2 de janeiro de 1930, em São Bento do Una, em Pernambuco, o general Zenildo ingressou na Academia Militar das Agulhas Negras, AMAN, em 1948, sendo declarado aspirante-a-oficial da Arma de Cavalaria em dezembro de 1950.

Ele foi ministro do Exército por mais de seis anos, no governo Itamar Franco e no primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso. Em toda a história da instituição militar foi o terceiro em tempo no comando.

Como general, ele foi Comandante Militar do Leste de 21 de agosto a 8 de outubro de 1992. Ele deixou o cargo para assumir o Ministério do Exército em 9 de outubro de 1992 e permaneceu no cargo até dezembro de 1998.

Pernambucano da melhor cepa, era ligado aos setores nacionalistas do Exército Brasileiro. Sempre se preocupou com a autoestima da instituição e com o bem estar dos membros da força terrestre. Deu especial atenção à educação e à formação. É dele o slogan “Exército Brasileiro, braço forte, mão amiga”.

Teve uma atuação decisiva na crise que culminou com o afastamento do Presidente Collor para evitar intervenção dos militares.
Em 1993 foi voz imperiosa enfrentando movimentos da baixa oficialidade pelo fechamento do Congresso. Também atuou para neutralizar a resistência de setores conservadores das Forças Armadas à lei que concedeu atestado de óbito a desaparecidos políticos durante a ditadura militar e previa indenização às famílias das vítimas.

Mas é o lado de compromisso com a questão social deste grande patriota que eu relato no capítulo de meu livro “Era outra história: política social do governo Itamar Franco”, Editora UFRJ, 2009, que nesta oportunidade republico aqui no Metro em sua homenagem.

Nesse livro descrevo as experiências desse governo curto, de 1992 a 1994, e de inúmeros personagens fundamentais, cuja atuação incisiva naquele momento, não tivesse acontecido, no mínimo a história teria sido outra. Um dos capítulos versa exatamente sobre o general Lucena, contando um pouco sobre seu papel no governo Itamar, como nos trechos a seguir.

“O presidente Itamar Franco estava realmente disposto a enfrentar a fome. De corajosa a populista, brandiam as mais diferentes vozes sobre a decisão de distribuir o feijão que estava estocado na CONAB no início do governo em 1992.

O governo, ainda acanhado, encontrou na decisão e no comando do então Ministro do Exército a condição para uma operação tão exitosa e catalisadora das suas energias e as da sociedade civil comprometidas com a inclusão social. Até hoje, no Iate Clube do Rio, local predileto de encontro e reminiscência de alguns generais da reserva, Zenildo é lembrado como o “pai do Fome Zero” e, embora discreto, não conseguia disfarçar seu orgulho.

Já estava com muita vontade de procurar o ministro Zenildo, que foi sem dúvida personagem fundamental no envolvimento das Forças Armadas na distribuição de alimentos. Após a conversa com Plínio de Arruda Sampaio, que destacou com tanta ênfase o papel dos militares no Prodea, o Programa de Distribuição Emergencial de Alimentos, tratei de encontrá-lo. Atendeu-me pronta e delicadamente. É uma pessoa muito simples e acessível, e depois de conhecer sua origem pernambucana, sua história familiar, que inclui o pai como um rebelde socialista, entendi que certos valores humanistas estavam inscritos no seu DNA.

Quando lhe disse do intento de fazer um registro da história da política social do governo Itamar, a partir da visão e percepção dos principais atores, ele foi rápido e enfático: “Temos muito que agradecer a oportunidade que vocês nos deram de nos mostrar junto ao povo de uma forma generosa e solidária”.

No meu entender, só este depoimento seria suficiente, pois demonstrava uma mudança na relação/percepção Povo X Exército, consolidada no pós-1964. Militares falam pouco, são discretos, cuidadosos, e sempre revelam o espírito de corpo, a necessidade de compartilhamento.

A possibilidade de encontro com Zenildo aconteceu após uma semana, pois ele precisou consultar alguns companheiros. No dia 28 de junho de 2007 cheguei pontualmente ao Iate Clube no Rio de Janeiro. Ele me aguardava com outro general, que fez elogios ao presidente Itamar no que diz respeito à valorização dos soldos dos militares. Zenildo logo orientou a conversa para a questão do combate à fome e juntos fomos contando o episódio da primeira distribuição de alimentos.

Era muito feijão apodrecendo, era um desatino a “política de estoques regulatórios” da CONAB. A mídia em cima, e o presidente, já irritado, convocou uma reunião de ministros para analisar especificamente a ameaça da perda do feijão. Jutahy Magalhães, o então Ministro do Bem-estar Social, não se sentia confortável com a perspectiva de imprimir, de pronto, ao seu Ministério uma prática assistencialista. Itamar indagou oficialmente, depois de sondar extraoficialmente, ao ministro do Exército se ajudaria a distribuir o feijão, no que ele se prontificou sem pestanejar.

O general amigo exclamou admirado: “Eu não sabia que o Zenildo era o pai do Fome Zero”. Ele não fez nenhum comentário, mas pude sentir a felicidade saltitar nos seus olhos.

Fomos para o interior do restaurante, onde já havia uma mesa reservada para nós. Observei que os garçons faziam continência e o chamavam de Excelência. Conversamos muito, e posso destacar a sua percepção de que o presidente Itamar ainda não foi devidamente compreendido. Falou que Itamar deixou a casa arrumada, “caiada”, como dizem os mais simples. Disse-me que não houve resistência da corporação para participar da logística e da distribuição direta dos alimentos à população. “Somos disciplinados, foi um pedido direto do presidente, não poderíamos recusar; além disso, também queríamos participar do combate à fome porque somos povo, somos parte do povo”.

Ele me presenteou com um livro chamado Depoimentos de Zenildo Lucena ao Projeto Democracia e Forças Armadas. Pediu-me que publicasse parte da sua entrevista, pois refletia exatamente o seu pensamento que gostaria que fosse mais divulgado.

“… O governo nos convocava para qualquer problema, como a distribuição de alimentos, cuja solução exigisse credibilidade e certeza de um bom encaminhamento. Então, tínhamos de entregar os alimentos naquelas prefeituras do interior, evitando que fossem desviados ou distribuídos no sentido partidário, particularmente no Nordeste, minha área. Nossa presença é importante, porque estamos em contato com o povo. E, ao abrir mais os quartéis, evitamos o que ocorreu no passado: o desconhecimento, as desconfianças. Nós temos que nos abrir mais …”

O texto refere-se ainda a várias campanhas e ao elogio do jornalista Villas Bôas Corrêa e do deputado Fernando Gabeira às participações do Exército em movimentos de solidariedade.

“… Existe um sentido educativo para o menino que faz o serviço militar e também para a imagem da instituição. Temos que buscar as tradições. Uma força como o nosso Exército tem que estar sempre revivendo a sua história e buscando algo que estimule a convergência, a união … “, continuava ele.

Reiteramos a importância da participação do Exército na distribuição de alimentos e lembramos: foi uma guerra, e “guerra é guerra, general!”. Neste momento, senti uma emoção clara em sua face e talvez a vontade de ainda servir mais ao nosso Brasil.

Pena que nós seres humanos ainda não vivemos todos os anos para os quais estamos programados espiritualmente.”
Minha continência, general Lucena. Até sempre!

Comentários
  • Carolina 2724 dias atrás

    O General Zenildo foi um profissional e ser humano incrível! Tive o prazer de conversar com ele várias vezes e sempre atencioso, solícito e educado, mesmo em momentos fora de hora.
    Esteio do serviço militar seja qual ele fosse por muito tempo! Exemplo a se espelhar!
    Fez mais para o Brasil do que muitos presidentes, incluindo o FHC, que só roubou, explorou e vendeu o Brasil para os ricos internos e estrangeiros.
    Estava muito doente nos últimos tempos, então descansou.
    Gostei do até sempre!

    Até General!

  • Ruth Maria Hargreaves Cardoso da Silva 2824 dias atrás

    Parabens Denise Paiva,
    belo texto, justissima homenagem.

    Aplausos e reverencia ao nosso General Zenildo Lucena.
    Impar em seu comprometimento com a democracia

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