Frestas de solidariedade – parte IV A paixão de Efigênia

Publicado por Denise Paiva 25 de outubro de 2012

Quando me lembro de Efigênia nas cansativas viagens de finais de semana, trazendo material para artesanato e levando peças prontas de artesanato para vender, como bolsas e sandálias, me pergunto se ela era só movida por convicções políticas e sentimento de solidariedade ou se tinha algum ingrediente a mais, e muito forte, que fazia aquela jovem carregar tantas sacolas pesadas entre a Cidade Industrial de Belo Horizonte-Contagem e a Penitenciária de Linhares em Juiz de Fora.

Quando me lembro daquela moça alta, magra, bonita, de cabelos longos e rabo de cavalo, simples, elegante, simpática e sempre com um sorriso nos lábios, me lembro do amor que ela sentia por Gilney. Todo sábado ela chegava por volta do meio dia e ia embora no domingo. Passou a dormir no Carmelo, e construiu uma forte relação com Irmã Terezinha. Ficou tão amiga do Geninho que chegava a me causar ciúmes.

O artesanato feito pelos presos também passou a ser consumido pelo nosso grupo, Itamar e Neide cuidavam da venda e também ficaram muito ligados a Efigênia, que além de suas muitas qualidades era muito carismática. O tempo passou e essas histórias e ligações afetivas ligadas aos presos de Linhares foram ficando na socapa, no inicio por um imperativo de segurança, e depois pelos rumos que nossas vidas foram tomando, mudando nossas comunidades de destino.

Mas um dia…, em 1996, em Cabo de Santo Agostinho, Pernambuco, um reencontro emocionante e profícuo. Eu trabalhava no Conselho da Comunidade Solidária, órgão federal em Brasilia, e a então primeira dama, Dona Ruth Cardoso, pediu que eu fosse visitar alguns projetos por este Brasil afora, que ela considerava exemplares. Um dos projetos escolhidos por ela foi o Centro das Mulheres do Cabo e me orientou que deveria ser uma visita de surpresa, para saber o funcionamento real do projeto. De surpresa, lá cheguei e pedi para falar com a Presidente e não é que me chega a Efigênia do Gilney.

Eu te conheço! Eu te conheço! Lembra de mim! Lembra de mim! Abraçamos, choramos, passeamos, conversamos e o melhor da história é que ainda pude ajudar a organização que ela criara e dirigia. De lá mesmo liguei para a Fundação Banco do Brasil que trabalhava numa relação muito estreita com o Comunidade Solidária e lhes sugeri que visitassem o Centro de Mulheres.

Não passaram muitos dias e Efigênia me ligou emocionada. A Fundação Banco do Brasil tinha enviado alguém lá e aprovado uma verba para um espaço que seria a creche. Creio que ela continua no Cabo e quero ainda voltar lá para abraçar a moça sorridente e amiga dos idos dos anos 70, a sacoleira de artesanato dos presos políticos de Linhares.

Luzes do cárcere brilham pelas frestas da solidariedade  

A solidariedade, como valor e principio ético nas relações humanas, é uma via de mão dupla. A solidariedade tem em si uma força notável de criar novos valores e apontar rumos para o avanço dos processos históricos e da consciência humana na sua dimensão maior, como é a consciência política.

Devemos muito aos presos de Linhares no que diz respeito à postura da rede de solidariedade em relação às eleições de 1974. Postura que acabou contaminando, pelo menos, uma grande parte do movimento de resistência democrática em Minas Gerais, em especial o segmento estudantil que, ainda em 1974, vacilava entre votar no MDB, o Movimento Democrático Brasileiro, que ocupava um importante espaço político, ou repetir o voto nulo de 70. Os tempos eram outros.

Creio que esta formulação “votar no MDB”, contou com força de argumentação de um jornalista mineiro natural de Teófilo Otoni, que também cumpriu pena no Presídio de Linhares. Seu nome, Nilmário Miranda. Os presos e familiares com quem tínhamos contato mais direto, sempre citavam as avaliações de Nilmário nas teses pró MDB.

Creio que há no DNA da mineiridade um compromisso atávico com a democracia, mesmo na concepção “burguesa” ou “reformista”, jargões daquela época. Sem duvida este ímpeto de votar e derrubar a ditadura pelas vias institucionais pulsava na alma daquele jornalista de bom combate, com uma tal virulência que contaminou rapidamente seus companheiros de prisão, contaminou nossa rede de solidariedade, que se colocou em marcha para influenciar a juventude juizforana e mineira a superar a postura “esquerdista“ e, já para nós, do inconsequente voto nulo.

Entramos de corpo e alma na campanha do MDB, apoiando Itamar Franco para o Senado, com o “Aceite o Desafio”; Tarcisio Delgado para a Camara Federal, com “Tarcisio seu voto fala” e guardamos o espaço ocupado e de influencia do “Partidão”, apelido histórico do Partido Comunista Brasileiro, para Marcos Tito, “Um voto pela liberdade”.

Parece que foi ontem… Fomos eu e Geninho até a sede do DCE, o Diretório Central do Estudantes da UFJF, Universidade Federal de Juiz de Fora, na Galeria Central, Rua Halfeld, então presidido por Celso Pimenta, nosso amigo e até padrinho de casamento, e lhe contamos sobre o “comando” que estávamos recebendo dos presos políticos de Linhares, para não só votar no MDB mas também levar o movimento estudantil a uma participação efetiva na campanha. Dali mesmo, escrevemos e remetemos uma carta para todos os diretórios acadêmicos de Minas Gerais conclamando o voto no MDB. Bons tempos aqueles em que fizemos história….

Tivemos uma participação muito intensa e protagônica na campanha do MDB.  Sob a batuta do líder estudantil Luiz Sérgio Henriques, conseguimos fazer os programas de rádio e colocar jovens para defender as teses que acreditávamos que deveriam ser veiculadas. Quem estava sempre no rádio era Maria José Feres que, além de preparada nos assuntos nacionais, se expressava muito bem. Quando o rádio anunciava nossos candidatos ou nossos jovens colaboradores, Luiz Sérgio entrava com uma gravação com sua voz magistral e inconfundível: “VAMOS ELEVAR O NÍVEL DOS DEBATES”.

No contexto da campanha de 74 do MDB em Juiz Fora, e no espectro cada vez maior da nossa rede de solidariedade e cumplicidades, lembro: Ivan Barbosa, Beth Palheta e Eduardo Salazar, Frederico Crespo, Áurea Celeste, Lucilia Neves, Reginaldo Arcuri, João Cesar Novais, José Carlos Sá Fortes, Leninha Crivelari, Ivan Mehry, Jubel Barreto, Helena Mota Sales, Gilvan Procópio… e tantos outros comprometidos com as liberdades democráticas e com a democracia que já se prenunciava para nós, ainda,  paradoxalmente,  como meio e como fim.

Bons tempos aqueles, repito, em que fizemos história e mantivemos conversas políticas e ideológicas intermináveis que atravessaram as madrugadas frias na terra de Clodesmidth Riani e Murilo Mendes.

Conclusão

Compreendi, definitivamente, que viver é ser livre e ser livre é minha forma de viver. Organizar e animar aquela rede de solidariedade aos presos políticos de Linhares, no inicio dos anos 70, teve um preço, sim, um preço alto, para Geninho e para mim, que foram para os desvãos dos nossos arquivos mas não para o esquecimento. Esta é outra história! História, sobretudo, que me honra e orgulha pois está coerente com minha vocação e saga de liberdade.

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