XXXVII – A volta de quem não foi

Publicado por Bill Braga 19 de fevereiro de 2024
a volta de quem não foi

a volta de quem não foi

Depois de resgatado o carro, a aventura seguia sem a presença da Daniela, o anjo que me levou até ali. Voltei para o Céu de São Thomé, o Ramon e algumas outras pessoas ainda estavam lá. Pedi para ver se poderia dormir ali com eles aquela noite, disseram que não teria problema algum. Eu estava com fome e lá não tinha rango, então voltei pra São Thomé para comer algo. Não me lembro muito bem dos detalhes, mas foram um dia e uma noite muito loucos. Cheguei, comi. Dei um rolé pela cidade, vários malucos-beleza circulavam ali. Conversei com um artesão hippie e resolvi comprar presentes para levar para minha mãe e minha namorada. Não que eu quisesse comprar o perdão delas com presentes, seriam só um símbolo de que eu pensava nelas. Lembrava de fato delas enquanto estava ali vivendo minha viagem psycodelica. Conversei muito com o hippie ou maluco de estrada como gostam de ser chamados.

Fiquei por lá, comi qualquer coisa e sentei no buteco …, sempre os butecos, minha maior perdição. Lá passou um cara vendendo uma flauta dessas de bambu, eu, óbvio, não sabia tocar, mas como vi o Ramon tocando, achei que podia aprender com ele e comprei uma de sete furos pra destros …, mas o engraçado é que eu, mesmo sendo destro, tocava melhor pra esquerda. Saíram uns sonzinhos, mas não foi aqueeela harmonia. Tinha que treinar mais, é claro, para aprender segundo os métodos tradicionais dos flautistas autodidatas. Voltei para o Céu de São Thomé. O pessoal tava fumando um beck lá, estranhei, porque nessa época ainda não sabia que no Daime tem uma linha que consagra a maconha como sendo Santa Maria. Dei umas bolinhas mas essa não é muito minha onda. O pessoal estava estranho, parecia cansado, tinha uma lá que levou mó espanco numa peia. Peia é o processo de dificuldade de enfrentação dos medos egóicos, um processo que se passa dentro do ritual da ayahuasca. Fiquei meio sem lugar ali e resolvi voltar para a cidade. Fui para a Pirâmide, um centro de convergência desses neohippies, vulgos tilelês, que frequentam São Thomé.

Lá estava eu fumando meu paieiro e admirando o maravilhoso pôr do sol, quando conheci duas meninas, lésbicas, que estavam por lá também. Batemos um papo e resolvemos nos encontrar mais tarde para tomar uma cerveja. Claro que por essa época não sabia dos perigos de se misturar álcool com ayahuasca no corpo. Isso porque ayahuasca é uma medicina sagrada dos índios e quando ela entra no corpo expulsa todas as energias ruins, o que é conhecido como processo de limpeza. A limpeza pode ser feita de duas formas, através do vômito ou das fezes. Como ainda tinha ayahuasca no meu corpo a combinação com o álcool seria bombástica.

Fiquei conversando um pouco com as meninas e resolvi rodar um pouco para ver se ainda tinha algum efeito da ayahuasca no meu corpo ou no meu espírito, mas não conseguia ver nenhum, apenas uma alegria inexplicável, vontade de compartilhar tudo que vivi ali, e mostrar para os outros, minha família, a força daquela medicina. O rapé eu não senti nada na hora, mas depois vim a descobrir que é uma medicina muito forte e também te coloca na força. Estar na força é quando nos conectamos com todo o universo, Deus, deusas, elementais, seres encantados, através do uso de algum enteógeno como ayahuasca, rapé ou sananga. Vale lembrar que para entrar na força temos, normalmente, que participar de algum tipo de ritual, conduzido por um líder, pajé ou xamã, para estarmos protegidos dos espíritos obsessores que podem chegar e nos perturbar com nossos medos e os deles durante o processo de cura espiritual.

Como ia dizendo, desculpe perder o rumo da prosa, mas é que as ideias são importantes e aparecem sem pedir licença em minha mente, e eu tenho que lhes contar essa história tintim por tintim para que vocês entendam o tamanho de tudo o que me aconteceu. Espero que ninguém mais nesse mundo, ou em outros, passe pela dor que precisei passar pra me curar. Mas voltando para a estória … fiquei sem rumo depois que minhas companheiras me deixaram, e fiquei rodando pela cidade procurando conhecer alguém legal. A Dani tinha me abandonado, e fiquei me sentindo carente de companhia. Nem era pra pegar ou sexo, mas pra prosear mesmo.

Sei que acabei voltando ao Céu de São Thomé e não achei ninguém lá. Deviam estar todos dormindo, mas não sabia onde. Daí voltei pra Thomé e dormi no carro, na praça central da cidade. Acordei e senti que ainda não tinha sido desconectado da força, parecia que todo o mundo conspirava a meu favor. Era Natal, ou véspera. E aí acabou que fui ao Céu de São Thomé encontrar o Ramon pra dar a prometida carona pra ele. Descobri que eles estavam dormindo num lugarzinho escondido, e estavam levantando naquela hora. Falei com o Ramon que precisava ir embora, encontrar com a minha família e tudo o mais. Ele disse que iria comigo até Três Corações e pegaria ônibus para voltar para BH. Ele me contou de um lugar chamado Fraternidade Kayman onde tem trabalhos de umbanda com daime, e ele fazia parte dessa casa. Me chamou para ir conhecê-la e eu disse que iria com maior prazer. Passando pela cidade de São Thomé, reencontrei com minhas amigas da noite anterior, e uma delas precisava de carona pra ir pra Três Corações. Eu ofereci, ela aceitou, e fomos então eu ela e o Ramon por o pé, ou a roda, na estrada. Me sentia extremamente leve e bem, mesmo sem ter tido as ditas mirações, que são as visões trazidas pela ayahuasca, então tava na dúvida se aquela medicina me ajudou ou não fez diferença no meu corpo e na minha alma… mal sabia eu o que estava por vir.

Voltamos conversando na viagem, o Ramon nos passando toda sua sabedoria de quem já está no daime e no xamanismo há muito tempo. Ele me contou como foi o resto do ritual, e o kambô, que ele disse ser mágico. Eu queria ter experimentado, mas não deu. Não naquela vez, não ainda. Chegamos na Rodoviária de Três Corações que fica pertinho de São Thomé, e fomos tomar um café e comer algo. Ah, como aquele café descia delicioso e conectava meus neurônios de uma forma tão boa, … me sentia ligadão … seria o daime?, ou o café? Dúvida impossível de responder. Ofereci carona para os dois, a menina e o Ramon que iam para BH também, mas eles não aceitaram, o que me deixou um pouco chateado. Seria bom rodar uns 300 km, com companhia para conversar sobre aquela experiência mística, será?, e compartilhar e aprender coisas novas com eles. Como eu sentia um impulso de beijar aquela garota, mesmo sabendo que ela estava com outra pessoa. Segurei a onda despedi de ambos e segui a estrada.

Como seria a volta?, pensava eu comigo mesmo, todos estavam preocupados comigo, familiares, namorada, amigos … pensavam que eu tinha surtado de novo, mas não tinha nada a ver com surto aquilo. Era apenas uma alegria imensa e um amor transbordante. Estava louco de vontade de compartilhar com todos as experiências místicas profundas que tive embalado pela medicina ancestral indígena. Será que entenderiam? Será que me internariam de novo? Será que teria algum apoio dentro da minha família? Perguntas que seriam respondidas em breve.

Na estrada a viagem foi embalada por música, alto e bom som, uns rocks básicos, e pensamentos na Daniela, pensando em como eu queria me casar com uma mulher como ela, …. , rebelde, inconformada, mística, intelectual, índia disfarçada de professora de inglês. Ela realmente me cativou e o sexo foi profundo, marcante! E as histórias dela, que tinha vivido na África, depois na Alemanha, quando casou-se. Aquela mulher, trazida a mim por Deus através de um site de namoro, parecia ser minha alma gêmea … meu animus, como diria Jung. Um fragmento de minha alma, que se reconectava ao meu coração.
Voltei dirigindo bem, acelerando um pouco, confiando na força divina que me guiava ao encontro dos meus entes queridos, que apesar de saber que estavam desconfiados e desesperados com minha atitude eu sabia que me perdoariam. A volta foi uma loucura, muita música, alta velocidade e em três horas cheguei em BH. Aí viriam os próximos desafios que esse guerreiro da paz teria que enfrentar.

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