Abro meus olhos e, mais uma vez a cena se repete: Valéria deitada na cama ao meu lado, eu no chão, o mesmo quarto, a mesma TV, as mesmas portas. Como eram iguais aqueles dias, que teimavam em não passar, dentro da clínica-prisão. Já não agüentava mais a monotonia, a mesmice. Ainda mais que eu tinha saído, tinha respirado os ares da liberdade por pouco tempo, até me trancafiarem novamente. Tinha flanado pelas ruas… Ah, que falta me faz a massa de pessoas, a beleza de andar sem rumo, espiando cada olhar, catando a inspiração em cada esquina, poetizando o mundo. Era como uma metamorfose, eu me libertava daquela forma que me prendia, daquela lagarta medíocre e ordinária que fui. Ganhava asas, abria as portas da percepção, e não mais queria do que apenas ser eu mesmo – flanar e poetizar. Isso era sintoma de insanidade!? Como li em algum lugar, em um mundo louco, os loucos é que são sãos …
Fragmentos. Pensamento não linear, conexões. Enxergo além do visível. Não há remédio que me “cure”. Duas portas em meu quarto. Uma, sempre aberta, dá para o corredor, elo com meus camaradas, de todas espécies. Aberta, sempre pronta para receber uma visita, sejam sãos ou insanos. Ali era a via de acesso ao meu universo, todos estão convidados a passar por esta. A outra porta sempre fechada. Sei o que há do outro lado. A porta fechada é o ícone da segregação e da castração que me tentam impor.
A essa altura, muito já foi dito, maudito, inter-dito, desde a véspera daquele carnaval em que viajei com minha namorada. Atual ex? Não sei por que caminhos ela anda, obscuras são as minhas lembranças. Ela esteve aqui, não vem mais. Entre um sopro de liberdade e a volta ao cárcere, nos vimos. Lembro de flashes. Não quero que ela se apague de minha memória, ela ainda vive no meu coração. Mas não está mais aqui. Será que não vem mais?
Tatiana também não mais está aqui. Nem mesmo sua voz sussurra em meus ouvidos. Nem mais sinto sua presença no arrepiar de minha pele. Me privaram de sua companhia. Nem a doce carioca Sandra, nem mais ninguém… Estava privado dos amores que perturbaram e inflaram meu coração. Mas não estava só, ainda. Na outra porta, a fechada, do outro lado, havia alguém.
Não era somente alguém, era alguém especial. Alguém que aplacava a dor de estar. Lembro-me do dia em que estava no pátio, isolado em um dos quiosques, melodiando no violão as mágoas do meu ser. Era sempre um momento de alegria. Eu sentava, em um quiosque qualquer, e dedilhava, cantava, exorcizava minha dor. Compartilhava com que quisesse, e aos poucos um ou outro vinham, cantavam, ouviam, sorriam. Neste dia vi de longe, no outro quiosque. Ela estava lá. Parada, inerte, o olhar melancólico, olhando sem ver, refletindo a tristeza da alma. Eu tocava, e me fixava nela. Mas as melodias não surtiam efeito sobre ela, não havia harmonia entre ela e o mundo, parecia entorpecida. Por fim, decidi sentar-me, eu o e violão ao seu lado. Ela me olhou desconfiada. E ali dedilhei mais um pouco, trocamos algumas palavras. Quão bela era a tristeza refletida nos seus olhos.
No outro dia eu esperava sentado abrir-se o portão que dava pro pátio. Ela chegou, sorrateira, e sentou-se do meu lado. Não falamos muito, somente nos olhamos. E um beijo foi a resposta natural de nossas almas perturbadas. Dali em diante, ela, Fernanda, se tornou minha companheira no cárcere. E ela estava ali, atrás daquela porta fechada. A porta que separava o último quarto da ala masculina, o meu, do primeiro da ala feminina, o dela.
O simples saber que ela estava ali, do outro lado, aplacava a solidão e a mágoa de estar isolado, cativo. Mais um ingrediente nesta sopa de loucura. Pobres poetas, escravos de seus corações voláteis, da necessidade de se apaixonar constantemente.
Encostado naquela porta fechada, escrevia alguns desabafos, na espera de serem ouvidos um dia:
“No presente momento arrumei uma mulher linda, cujo nome não posso revelar, que poderia ser a mulher da minha vida. Só que as pessoas não nos deixam encontrar. Essa é a sensação de quem vive numa prisão. Homens e mulheres não podem nem conversar em paz. Sem segundas intenções, apenas para passar o tempo juntos mesmo. Afinal de contas fomos feitos para amar. Cada um ama quem quer e do jeito que quiser. Só que aqui na Pinel é diferente. (…) Isso é um absurdo, mas tudo bem, a vida continua. Eu queria vê-la de qualquer forma, parecia que a minha vida dependia daquela visita inusitada. Mas era apenas o AMOR, voltando a se manifestar na minha vida. Sem pressões, sem psicoses ou neuroses. Apenas o amor na sua mais simples manifestação. Amor pelos amigos que fiz aqui, amor por Ela minha musa inspiradora, que me deu animo para escrever essas páginas. Sem desrespeito ao dono da clínica, ele que vá se fuder! Homens e mulheres merecem companhia do sexo oposto. Mas a vida nas clínicas não é tão simples assim. Existem profissionais pagos para evitar o contato. Eles cumprem seus deveres, e quanto a nós, homens românticos, ficamos desnorteados. O amor é assim, nos pega pelo cotovelo na hora em que menos esperamos. Mulheres me enganam como vocês verão na seqüência. Mas espere um pouco. Quero ela agora, mas não tem jeito. E agora? O que faço? Escrevo. Tento relaxar ouvindo uma boa música. Fazer o que, né? Fazer nada. Escrever sobre o inescrevivel, tentar desabafar as mágoas de um coração partido, cansado de ser pisado e maltratado.”
E me invadiam os versos imortais do poetinha camarada, Vinicius de Moraes:
“Para isso fomos feitos
Para isso fomos feitos:
Para lembrar e ser lembrados
Para chorar e fazer chorar
Para enterrar os nossos mortos –
Por isso temos braços longos para os adeuses
Mãos para colher o que foi dado
Dedos para cavar a terra.
Assim será a nossa vida:
Uma tarde sempre a esquecer
Uma estrela a se apagar na treva
Um caminho entre dois túmulos –
Por isso precisamos velar
Falar baixo, pisar leve, ver
A noite dormir em silêncio.
Não há muito que dizer:
Uma canção sobre um berço
Um verso, talvez, de amor
Uma prece por quem se vai –
Mas que essa hora não esqueça
E por ela os nossos corações
Se deixem, graves e simples.
Pois para isso fomos feitos:
Para a esperança no milagre
Para a participação da poesia
Para ver a face da morte –
De repente nunca mais esperaremos…
Hoje a noite é jovem; da morte, apenas
Nascemos, imensamente.”
Comentários
=D
que bonito!