Acordei sem saber onde estava. Na realidade percebi que ficara certo tempo sem consciência de mim. Algumas lembranças fugidias, desconectadas, nada que me ajudasse a perceber o que ocorrera. Estava em um quarto, com duas camas vazias. Eu dormia com um colchão no chão, e as camas ao meu lado. Um banheiro, um armário. Certamente não estava em uma prisão ou hospital. Mal sabia que era um misto dos dois. Vi que a televisão que ficava no meu velho quarto estava ali, o DVD também. Mas estava um tanto quanto atordoado. Sentia meu corpo pesado. Tentei andar, minhas pernas pesavam toneladas. Fui ao banheiro. Um banho às vezes pode ressuscitar um defunto, ou semi-defunto, como me sentia. Nada de melhoras. O que diabos tinham feito comigo, e que fizera eu para merecer ficar naquele estado deplorável?
Enquanto me perdia em divagações, abriu-se a porta do quarto, surgiu uma moça, simpática, vestida de branco. “Bom dia, dormiu bem?” questiona a moça. Ela ainda não tinha percebido que eu estava consciente, por isso se assustou com a minha reação indignada. Indaguei onde estava, quem era ela, porque estava ali, como faria para sair. Ela, percebendo a gravidade da situação, me pediu um minuto, que traria alguém capaz de me explicar a situação.
Chegou um homem de branco. Por volta de cinqüenta anos de idade, ar e semblante sérios. Eu começava a ficar desnorteado, falando e perguntando sem parar, dizendo que queria sair dali, querendo notícias da minha família. Me sentia abandonado, em um local estranho, com meu corpo pesando e dificuldade de raciocínio. Mal conseguia encadear as frases e pensamentos. Ele observava minha reação pacientemente, esperando o momento oportuno para intervir. Na “hora certa”, começou a me explicar. Disse que eu estava daquele jeito devido a algumas medicações, mas que não podia ficar agitado. Eu estava ali porque era o melhor para mim, todos estavam querendo me ajudar, inclusive minha família que me trouxera àquela clínica. No fim, exigiu que tomasse uma medicação, para me acalmar. Como fiz menção de recusar, ele disse que caso não tomasse, seria via injeção novamente.
Aquilo foi uma tempestade de informações na minha mente. Vá lá que nunca fui das pessoas mais comuns, podia até ter alguns problemas psicológicos-psiquiátricos, mas daí ser internado em uma clínica psiquiátrica? Era muito para eu conseguir entender. E não me lembrava os motivos, não me lembrava o que eu fiz, só sentia um cansaço tremendo. A idéia da injeção parecia um trauma. Fiquei apavorado, e resolvi tomar meia dúzia de comprimidos. Pedi ao médico, doutor Lucas, que me explicasse direito, precisava entender. Ele disse que entenderia, assim que fosse ter minha consulta com ele, em breve, mas que agora precisava atender outros pacientes. A enfermeira, Valéria, uma das que passava as noites velando meu sono, também se despediu de mim dizendo que ficasse calmo, que iria me lembrar de tudo. Carinhosamente, disse que se precisasse ela estaria logo ao lado.
Em uma situação normal aquela doçura e carinho me tocariam, mas logo após eu descobrir que estava internado, sem saber com qual problema, com minhas sinapses lentíssimas, a sensação de ficar sozinho naquele quarto me causou espanto. A solidão é algo apavorante quando estamos sem chão. É a lógica do abandono. Não nos sentimos humanos, nos sentimos um problema. Problema que ninguém parece querer lidar, nem os médicos, nem as enfermeiras, nem a família. Com grande dificuldade de pensamento, me indagava onde estariam meus familiares. Teriam eles me abandonado ali, simplesmente, esperando eu me curar?, de que mal não sabia ainda. Eu tinha uma namorada, disso eu me lembrava. Teria ela consentido com essa decisão absurda, me abandonando ali junto com sei lá que espécies de loucos? Pensei no irmão mais novo. Ele deve estar entendendo menos que eu tudo que ocorre, embora já tenha idade para ter alguma idéia. Como deve sofrer! Ele havia de ser um aliado para me tirar daquela situação. Mas como contactá-lo? Vi que no criado-mudo estava o meu celular. Pensei em ligar para alguém. Meu pai, minha mãe, meus irmãos, meus avós, alguém havia de me dar uma explicação plausível. Resolvi descobrir o que mais havia naquele quarto-prisão.
Na geladeirinha, sucos de uva e iogurtes. Alguém que conhecia bem meu gosto tinha deixado ali para mim. Se tivesse uma cervejinha, abriria naquele momento. Mas provavelmente todos aqueles remédios não me deixariam desfrutar os prazeres do álcool. Ainda no criado mudo, um livro de poesias, Vinicius de Moraes. Aquele livro despertou uma série de memórias que esboçavam tudo que tinha ocorrido. Junto com o livro estava meu Playstation Portátil, PSP. Uma avalanche veio em minha mente… Muita informação ao mesmo tempo, não conseguia absorver tudo, então resolvi tomar outro banho. Não tinham passado nem trinta minutos do primeiro. A quantidade de banhos é um indício. Indício de que estava prestes a descobrir algo.
Durante o longo banho, a tempestade de lembranças e idéias, a brainstorm, continuou acelerada, mesmo com a lerdeza do meu cérebro, provavelmente afetado pelos remédios. Uma viagem para o Rio de Janeiro. Juiz de Fora, depois. Uma festa. A insônia. A namorada e os pensamentos infiéis. A Musa Inspiradora. Fragmentos de minha própria história que, ao mesmo tempo que me atordoavam, traziam algum sentido àquela situação. Fui interrompido da minha exorcização interna. Minha mãe chegara no quarto. Um alívio. Não estava de todo abandonado. Talvez ela me ajudasse a ligar os elos fragmentários de minhas memórias. Precisava tecer as teias do sentido daquela experiência, até mesmo para poder me ajudar a me ajudarem.
Vi o olhar aflito de minha mãe. Ela percebera que novamente eu tomara banho com minha bermuda. Já falara para eu parar com aquilo. Mas ainda molhado lhe dei um abraço emocionado. Nunca tinha sido tão bom encontrá-la. O carinho e a emoção desse encontro, eivaram de esperanças aquele olhar triste e maltratado, de minha mãe. Ela me abraçou, e ao ser bombardeada de perguntas, segurou as lágrimas que teimavam em pular de seus olhos, para tentar me explicar, o mais calmamente possível, a situação em que me encontrava, e os motivos das atitudes que ela tomou, como me internar ali.
Não foi um diálogo fácil. Ainda que eu tenha encontrado algumas memórias perdidas, elas ainda não tinham uma lógica, nem se figuravam para mim como causas de algum mal psiquiátrico. Na realidade eu me tomava sempre como o senhor da verdade, por mais que nem mesmo me lembrasse da metade do que tinha ocorrido. Além disso ainda tinha uma atitude agressiva, condenatória, indagando como ela fora capaz de fazer aquilo comigo, me deixar ali, sozinho, no meio de loucos. Acreditaria ela que eu era como os outros? Drogados, esquizofrênicos, maníacos ou depressivos? Ela tentava se esquivar, tentando me trazer para a realidade, invocando minhas lembranças, algumas das minhas atitudes. Ainda assim tudo estava confuso para mim. Ainda hoje é. Mesmo com o tempo, algumas perguntas permanecem irrespondidas. Talvez nunca encontre as respostas. Mas algumas vezes as perguntas importam mais que as respostas. São as perguntas que nos movem, as respostas podem estagnar. E naquele momento, em que pensava ter de volta a consciência de mim, tudo que queria era perguntar e ser respondido. Mas ainda não era a hora, nem a pessoa adequada para me satisfazer. Percebi isso, e como vi que ela ia embora, perguntei dos meus irmãos, da minha namorada, do meu pai. Todos estavam bem, preocupados, mas bem. Viriam me visitar, quando fosse possível, meus amigos também. Foi um acalanto para meu coração. Realmente não estava sozinho naquele lugar inóspito. Era uma coisa passageira, imaginava, agora que estava bem, em breve reveria todos, tudo voltaria a seu lugar. Mal imaginava eu os percalços que ainda me esperavam. Como diz o poeta são as pedras que encontramos no meio do caminho que valorizam a caminhada.
Comecei a restaurar em minha mente o que tinha ocorrido. Na realidade tentava buscar o meu eu, restaurar minha identidade que havia sido fracionada. Tinha à essa época vinte e três anos recém completados.
Comentários
Vai ser muito bom seu ponto de vista Silvia…
Afinal de contas até onde vai a ficção, e até onde começa a história é algo que nem os historiadores nem os escritores podem definir não é?
Então entre nas asas desta imaginação, sua companhia é mais que bem vinda…
beijos
Nossa, faz um tempão que li esse capítulo pela primeira vez.
Seu estilo instiga. Agora, com a mesma força da primeira leitura. Acho isso incrível!
Como nunca soube dessa história, a não ser por este texto, ainda parece pra mim obra de uma grande imaginação.
Acho que vou ler assim, por um ângulo diferente daquele que as pessoas que te acompanharam provavelmente enxergam cada capítulo… deixa eu ver no que que dá.
Beijinho!
Silvia
Puxa Bill, que bom foi descobrir este espaço! Te ler é um grande prazer, tanto pelo conteúdo quanto pela prosa; e o mais interessante é que você às vezes faz umas frases curtas mas tão densas! É difícil ir objetivamente até o pé de página sem parar nesses momentos, sem curtí-los, explorá-los, mesmo que essa apreciação evoque sentimentos pesados e lembranças não muito boas.
Parabéns pela garra e pela escrita! São duas qualidades raras!
Pois é Lucas, você que sempre foi um amigo e interlocutor que tive o privilégio de ter, eu que fico feliz que tenha descoberto.
Obrigado pelas palavras, camarada.. Quando a escrita brota de nós mesmos, visceral, quando a alma escreve e o cérebro só ajuda, acho que fica deste jeito que você descreveu…
abraços
Oi Bill, nossa to quase morrendo de chorar aqui, lembrei de tudo, da preocupação de todos, da ansiedade….. Infelizmente não consegui estar por perto fisicamente…. Mas sempre pedia por você em minhas conversas com o povo lá de cima… Tenho um carinho enorme por você!!! Acho que você sabe disso. Você escreve lindamente…. comecei a ler o último que postou, aí ví que tinham outros anteriores, procurei o primeiro para começar do início, e me apaixonei pela forma que você escreve, como já disse alguem aí nos outros comentários, isso é prova de que tudo é passado e serviu para te fortalecer como pessoa…
Um bj enorme!!! Vivi
Ei Vi,
Que bom ouvir (mais do que ler) tuas palavras… Às vezes a distância física não importa, a ternura como você escreve, me faz sentir bem próximo. É, às vezes, há uma angústia revivida, mas mais do que isso, ao retornamos a esta época, temos a chance de ressignificá-la tanto eu quanto vocês que estiveram por perto e sentiram as dores.
Obrigado pelo carinho e pela companhia!
beijos!
Oi Dani…
Eu devo agradecer por compartilhar da minha caminhada… E você faz parte dela, e me ensina muito com tua visão de mundo. As dores podem ser pedras, ou podem ser trampolins, não é? Sabemos que elas não nos abandonam, mas compartilhá-las ajuda a acalmá-las, e assim a ascenção é possível…
Muito obrigado pelas doces e generosas palavras, e mais que tudo pela companhia!