IX – Eu trago harmonia aos loucos … e aos sãos

Publicado por Bill Braga 22 de maio de 2020

Desci, ou melhor, aterrisei do ônibus no coração da Savassi, em BH. Valéria, a enfermeira, conversa tão docemente comigo enquanto lhes conto. Ela realmente cuida de mim, não como aquele senhor-repressor de branco. Valéria tem a candura, a doçura. Às vezes faz carinho como se eu fosse teu filho, me deixa colocar o colchão no chão. Talvez ela consiga me entender. Ela me ajuda muito, ajuda a diminuir o peso do encarceramento. Ela e a Sandra, a outra companheira das madrugadas.  A ternura no olhar delas, ao me encararem como que diz: eu te entendo. Só isso já suaviza tudo. Queria poder congelar seus olhares em minha mente, para nunca mais os esquecer. Mas elas têm que me dar os remédios, malditos.

E eu descia da Savassi, ainda eletrificado. Ainda pulsando, ainda no turbilhão. Saí do ônibus correndo como quem tenta fugir de algo que não sabe o que é. Corri e cantei. Diz velho ditado que quem canta seus males espanta. Eu tentava os espantar, mas nem o canto era suficiente.  Desci ainda tentando encontrar onde estavam escondidos os emissores daquelas vozes que ressoavam na minha caixola. Debaixo dos bancos? Não, talvez tivessem escondidos no bagageiro. É isso, dali eles destilavam aquelas mensagens agoniantes. Só podia ser. E fui. Passei na frente de todos, me enfiei entre as malas, cadê eles? Cadê ela? Eu precisava achá-la, ela, Tatiana, só ela com sua beleza e sabedoria poderia me ajudar. Mas eles não estavam lá. Já deviam ter saído. Como eram esguios. Eu precisava achá-los, precisava encontrá-la, precisava beber daquela fonte de vida encarnada – Tatiana, ou fonte T.

Peguei minha mala e saí buscando encontrar as vozes. Como podemos encontrar vozes, se elas são ondas eletromagnéticas, freqüências que apenas nosso aparelho auditivo capta? Meus olhos precisavam vê-las, meu tato tocá-las, minha boca senti-las. As vozes tinham que se materializar, só assim eu me acalmaria. Andei, com meu radar interno ligado, atrás delas. Entrei nos bares, restaurantes, vasculhei as cozinhas, os depósitos. Logo que eu achava o esconderijo delas, elas se mudavam, saíam como cobras, numa rapidez, que me deixava estonteado. Os donos dos bares tentavam me impedir de entrar, de subir nos porões, mas não conseguiam. Eu ia com todo ímpeto atrás do meu pai, da Tatiana e do Marquinhos, que me torturavam por dentro. Ninguém me entendia, e seus olhares repressivos, cheios de ódio, me deixavam ainda mais nervoso. Havia, possivelmente alguns guardiões me ajudando. Não sei quem eram, mas havia. Alguém me protegia, eu sentia isso, mas não podia saber quem era. Podiam ser anjos, que só eu sabia que estavam ali. Mas que estavam, isso é certo.

Achei meu repouso em um bar, ali sentei e fiquei com as vozes em paz por certo tempo: Baiana do Acarajé. Local da diversidade, da intelectualidade. Sentei e pedi uma cerveja. Se me lembro bem, minha mãe me ligou, eu disse que chegara, mas não iria para casa. Estava na Savassi, e ali mesmo permaneceria. Estava procurando meu pai. Estes malditos remédios não me deixam lembrar se conversei com a namorada. Ela merecia mais cuidado, mas eu não conseguia pensar nisto. Talvez se ela estivesse comigo as vozes não mais me agitariam. Talvez ela pudesse ser como a Tatiana. Acho que falei com ela, mas estava elétrico, ela certamente não entendeu. Ninguém entende. Ninguém está pronto para entender. Ninguém sabia me ajudar da forma que eu queria. E a música foi me acalmando, a cerveja ia descendo como água, e inundando meu peito. E a Tatiana me deixava mais tranqüilo, ela estava ali comigo.

Enquanto o caos interno diminuía, comecei a reparar em todos que estavam em volta. Ali havia gays, lésbicas, héteros, e todos me pareciam um mundo de possibilidades. Todos pareciam me entender, e enquanto escrivinhava algumas coisas, aquele ambiente me trouxe um pouco de paz. Eu queria conversar, mas não ousava abordá-los. Eles estavam ali para me ajudar, e o script dizia que não precisávamos conversar. Somente estar. E nesse momento chegava minha mãe, sabe-se lá como tinha me achado, junto com seu namorado Pedro e meu irmão Léo. Rompia-se a momentânea paz do ambiente, e as vozes voltavam a me incomodar.

Valéria pede para eu descansar, me chama para contar mais um pouco sobre sua vida. Ela me tem como um porto-seguro, meu colchão é o seu divã. Ela me ajuda, portanto não posso negar isso a ela. Confesso que às vezes queria ir um pouco além. Ela é bela, tem os cabelos negros e a pele alva. Uma melancolia tenra no olhar. Preciso ouvi-la, apesar de querer continuar a lhes contar. Ela precisa mais de mim do que eu dela. Talvez por isso me mantenham aqui, enjaulado nesta clínica. Eu trago harmonia aos loucos  ……    e aos sãos.

Comentários
  • Ondina 4733 dias atrás

    Que bom ter voltado para BH. Poderia ter tomado outro destino… Apoiado pela família,graças a Deus, vc venceu.Que mais aconteceu?
    Estou aguardando, pois a narração é muito boa e fico esperando a próxima página.
    Receba todo meu carinho e bjs da prima,
    Ondina-RJ

    • Bill Braga 4732 dias atrás

      Oi Ondina, obrigado pelo carinho…

      Bom, o que mais aconteceu, veremos em breve, pois a viagem terminou mas a estória está só começando…

      bjos

  • Batore 4733 dias atrás

    Gabriel,

    Continuo acompanhando cada um de seus capítulos e fico muito feliz que você tenha decidido dividir estes momentos difíceis pelos quais passou. Conte sempre com este seu amigo!!!! Você fez muita falta no meu casamento.

    abração.

    • Bill Braga 4732 dias atrás

      Grande Batoré, brigado pela amizade sincera e leitura companheira…

      Compartilhar é sempre a melhor forma de dissipar os fantasmas não?

      O casamento, perdi cara, motivos compreensiveis, depois te conto…

      abraços

  • Myriam Menin Ferreira 4734 dias atrás

    Querido Biel, foi realmente um calvário a sua volta de Juiz de Fora; e felizmente sua mãe, com o faro que as mães têm, conseguiu encontrar você. Encontrou o Biel físico, porque o outro estava longe,longe…Mas também voltou, no devido tempo. E a somatória de todas as angústias, as suas e as nossas, teve aos poucos sua tranquilidade reconquistada (a duras penas, diria você). Beijo grande, Vó.

    • Bill Braga 4734 dias atrás

      Pois é Vó.. As mães tem razões que a razão desconhece… As “duras penas” se tornaram tão leves, que todas as angústias, e todo o processo se tornou uma memória, não um trauma. Lembre que no alemão traüme também significa sonho… As angústias não se tornaram um pesadelo, mas uma forma de expressão..

      Obrigado pela leitura mais-que-instantanea!

      beijos

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