Deixava o Rio, mas chegaria em Juiz de Fora, outra cidade agradabilíssima, que tinha me conquistado. Nossa história, minha e daquela cidade, era recente, mas intensa. Ali era um pedaço do Rio, como dizem os mineiros, talvez por isso eu gostasse tanto de lá. Dessa vez, nem as cicatrizes que a estada deixariam, serviriam para me afastar de lá. Por mais que não voltasse com tanta freqüência, aquela cidade, ou melhor, ela e algumas pessoas que lá habitam, também habitam em meu coração.
Juiz de Fora representara, alguns anos antes um desafio na minha vida. Simplesmente porque meu pai, depois de voltar de Londres e assumir sua homossexualidade, mudara para lá. Vivia com seu companheiro, Marquinhos, na ONG que montaram, o Movimento Gay de Minas, MGM. Eu já tinha alguma notícia, sabia do trabalho que desenvolviam, mas nunca tinha ido. Lidava bem, aparentemente, com a sua orientação sexual, mas não conhecia seu companheiro oficialmente – já o conhecera na infância como um amigo do meu pai. Era um desafio a superar ir até lá. Não nessa época do Rio. Essa época eu já tinha aquela cidade como um segundo lar. Mas a primeira vez foi por uma feliz coincidência do destino. Uma viagem de pesquisa me levou a enfrentar o inevitável, e abriu um mundo de possibilidades, a diversidade se expôs nua e crua.
Fazia uma pesquisa, no longínquo ano de 2005, sobre a história da farmácia em Minas. Não era um assunto que me chamava atenção à primeira vista, mas prometia render um bom dinheirinho, então embarquei. Com a pesquisa o tema se mostrou fascinante, e a história, dependendo do modo como é feita e contada, é realmente preciosa. Um dos locais que eu e a equipe que trabalhava comigo deveria ir, era Juiz de Fora. Logo me prontifiquei a ir, dizendo que meu pai morava lá. De cara isso suscitou a curiosidade das pessoas, querendo saber o que ele fazia, com que trabalhava. Hesitei num primeiro momento, me esquivando, mas aos poucos revelei a alguns colegas a curiosa história.
Acabei indo sozinho a primeira vez. Antes de chegar a expectativa era grande, como eu reagiria, como era aquele mundo em que meu pai vivia, que nos parece tão distante, o mundo dos gays. Não é tão distante assim. Na realidade em alguns aspectos, como o sentimento de posse, os héteros estão bastante atrasados em relação aos homoafetivos.
Afinal de contas, ainda que a cultura seja formadora de mentes, somos todos, gays e héteros, humanos, acima de tudo. Mas será que existiria uma essência do ser humano? Essência. E a loucura? Seria causada por alguma essência mal formada? Lembrei-me da teoria dos quatro humores, que explicava a loucura e a melancolia na Idade Média. Será que eu tinha cura? Me perco em devaneios, e quase esqueço a história que lhe contava. Contava da minha primeira ida à Juiz de Fora. Ah, como aquela cidade me impressionou bem! Como passou a morar no meu coração. Não somente pelas belas mulheres que por ali gorjeiam, mas pela amabilidade das pessoas. Nada de carioquês, por mais cariocas que eles se considerem. Muito interessante, mas voltemos aos fatos, ou ao que deles me recordo.
Fui pesquisar, deparei-me com o inevitável. Mas ele se fez tão caloroso para mim, que o inevitável se tornou o agradável. A receptividade que tive na ONG do meu pai, que também era sua casa, foi impressionante. Aliás, tornou-se também mais uma casa minha. O carinho, sem exageros e ser meloso demais, que recebi ali foi realmente surpreendente. Todos se orgulhavam da minha postura, todos eram curiosos para saber quem era o famoso filho do meu pai. Curioso. Queria poder continuar lhes contando, mas no instante os remédios turvam minha visão. E ainda me chamam para tomar outra injeção. Querem podar a minha criatividade. O que fiz de tão mal? Não consigo lembrar-me. As poucas lembranças são dolorosas. Mas se reconstituirmos o fio dessa narrativa, você e eu, conseguiremos entender o porquê. Os porquês nos movem, e nunca os deciframos. Mas não podemos deixar de tentar.
Comentários
Gabriel,
Parabéns pelos relatos. Escrever nos ajuda a organizar os pensamentos e entender os sentimentos…
Um beijão,
Natália
Gabriel, parabéns pela maestria dos textos. Pena que nem sempre conseguimos nos aprofundar em nós mesmos e conhecer a fundo tudo que temos guardado por lá. Conte sempre com esse amigo, pouco presente, mas que sempre o tem na mais alta estima.
Valeu Batore, e a presença a gente sente não só não quantidade, mas não qualidade, e todas as vezes que nos encontramos a qualidade da nossa amizade fica mais forte. Obrigado pela amizade e pelas palavras, conte comigo também camarada!
Sim, querida Cezarina… Compartilho da tua dor com esta perda, assim como outras pessoas já tiveram fruto da incompreensão. E ainda estamos longe de termos uma sociedade que aceite a diversidade, por isso também compartilho da alegria pela tua irmã e pela postura…
Nossas histórias se unem no universal que compartilhamos, e agradeço muito tua leitura companheira, teu comentário enobreceu tanto este espaço.
Obrigado.
Que linda, essa estória, parecida com a minha.
A diferença é que a minha é a de dois irmãos, uma é minha irmã caçula e o outro era o meu irmão mais velho, que por incompreensão das pessoas, acabou por se matar temendo a reação da comunidade.
Já minha irmã é o meu orgulho e também dos outros irmãos.
Sabemos que a orientação sexual não tem nada haver com a essência dos seres humanos, independe da sua orientação, eu aprendi com meus irmãos a ter muito orgulho deles, e mesmo defender essa causa dando sempre exemplos da beleza, e da coragem de pessoas que tem a coragem de se assumir como são. Mais uma vez parabens pela sua compreensão mesmo antes da injeção.
Biel, cá estou eu de novo (sem latim). Li o seu texto, continuo acompanhando o seu caminho (e o temporário descaminho) com o carinho de sempre. A sua primeira impressão do novo lar de seu pai sofre, a meu ver, a influência da primeira visão de algo inusitado e até mesmo proibido, e que se descobre ser uma situação rotineira para os personagens que a vivem. E seu ego tambem ficou agradado com as demonstrações de apreço por se mostrar acessível dentro da situação já dita inusitada. Vamos em frente na sua saga. Beijos, Vó
Querida Vovó.
Sei que nem sempre é fácil acompanhar os caminhos e descaminhos. Gostei da tua análise, bem ponderada, e talvez sim, você esteja certa de um ponto de vista, talvez tenha algo a mais. Na continuidade nossas hipóteses continuarão à prova, e mesmo que viveu esse outro caminho percorrido, pode revê-lo com outros olhares. Talvez neste processo, parafraseando Marx – tudo que era sólido se desmanchou no ar….