III – Coração Pleno, Mente Confusa

Publicado por Bill Braga 30 de outubro de 2019

Voltando ao Rio, para chegar a Botafogo, peguei um bonde e um metrô. Interessante o passado e a modernidade conviverem juntos. O Rio é a cidade das antíteses. Sociais, culturais, econômicas, tecnológicas. Tanto o velho bonde, quanto o moderno metrô me foram muito úteis, e rapidamente chegava ao meu destino. Lá, logo de cara, vi uma cena pitoresca. Um sujeito meio velho com alma de novo, “plantando bananeiras” na frente de todo mundo. O velhinho estava muito feliz, mas aquilo não incomodava nem a ele nem a ninguém que passava pelo local. Ele certamente exercitava a mente e o corpo, e pouca diferença lhe fazia o que as pessoas pensavam dele. Noutro dia vi-o de cabeça para cima, mas não ousei travar um diálogo. Oportunidade perdida, pois ele me parecia um poço de sabedoria.

Na realidade a sabedoria está onde menos esperamos. A real sabedoria não vem dos livros, mas da vivência e experiência. Lembrei-me do ditado: “O diabo deve ser respeitado, não por ser diabo, mas por ser muito velho!” Sem saber, aquele senhor de cabeça para baixo me confirmou isso. Não foi preciso a palavra. Aliás, certas horas a palavra só atrapalha. Olhares, gestos, movimentos, dizem mais a um bom observador.

Enfim, pulando alguns detalhes, foi um dia intenso e longo de pesquisa no Arquivo Público do Rio, muito bem organizado, e burocrático. Já cansado, fui-me embora antes do fim do expediente, já tinha encontrado muita coisa do que precisava.  Mas não são coisas de pesquisas, ou detalhes deslumbrantes de minhas impressões do Rio de Janeiro que importam. O que realmente conta é meu estado psicológico. Como cada experiência daquela viagem atuava em minha mente perturbada.

De volta ao albergue, conheceria ela, a dona, Sandra. Uma jovem, de no máximo 30 anos. Belíssima, inteligente, o sotaque nordestino de pernambucana nascida em Recife. Cada um desses ingredientes serviu para me cativar. Como já disse Sêneca, não eram seus olhos, suas pernas ou sua inteligência que me chamavam a atenção, mas o conjunto da obra. O primeiro papo foi rápido, apenas apresentações. Eu tinha pressa em tomar mais um banho, relaxar um pouco e absorver todo o primeiro dia na cidade. Mas mesmo nesses breves instantes ela já se fixara em minha mente. Me trouxe pensamentos perturbadores. Afinal de contas eu tinha uma namorada, ela um namorado. Nada disso impediu-me de fantasiar. Mas não era a hora ainda. Eu ainda não tinha a conhecido totalmente. Em breve conheceria um pouco mais.

No dia seguinte finalmente teria a oportunidade de conhecer melhor a Sandra. Se ela já me cativara anteriormente, nesse dia me conquistaria. Vá lá que meu coração é bem aberto, mas ela era, ou ainda é, uma pessoa especial. Ainda que minha namorada não saísse de minha mente, a Sandra ganhou um espaço ali, confundiu-me ao mesmo tempo que me impressionou com seu jeito nordestino, calmo e decidido. Para complicar ainda mais minhas emoções, durante o dia li algumas partes do Calabar, de Chico Buarque. A peça é “O Elogio da Traição”, do brasileiro que se aliou aos holandeses contra os portugueses na invasão do século XVI. Elogiar a traição, elogiar a loucura como fez Erasmo de Roterdam, tudo isso mexeu comigo. Eu queria experiências sensórias, químicas, biológicas e psicológicas distintas. Sem drogas ilícitas. Mal sabia por quais bocados passaria. Mas tudo vale a pena, quando a alma não é pequena, como já ensinava o múltiplo Fernando Pessoa.

Depois da pesquisa, de volta ao bar. Sempre o álcool como fiel companheiro dos solitários. Ele é socializante. No bar conversei com vários habitantes do bairro Santa Tereza sobre assuntos diversos. De volta, Sandra me chamou para conversar com ela e uma amiga, na área comum, cheia de plantas, do albergue. Não tinha como recusar. Em breves instantes chegaria mais um companheiro, figura estranha e fora do tempo, espécie de hippie congelado. Essa conversa seria decisiva para minha viagem psicodélica surtada, causada pelas confusões amorosas. Exclusivamente? Talvez não. Diversos são os fatores. Impossíveis de detectar as causas. Voltemos aos fatos, ainda que contra eles haja argumentos.

Já estava com certa dificuldade para dormir. A marca deixada pela conversa com a Sandra, uma pessoa que conviveu com Chico Science, fundador do Manguebeat, foi deveras séria. Abriu um mundo de possibilidades em minha cabeça. Talvez o próprio clima do Rio fosse propício a isso, aquela cidade linda, calor, muita gente, turista, a boemia de Santa Tereza. A tudo isso some-se o ânimo com a pesquisa e as perspectivas que o ano reservava. Talvez fosse muita coisa ao mesmo tempo. Mas sempre fui extremo. Ou tudo ou nada. Até escrevi um poema sobre isso, alguns meses depois. Intenso. Prenhe de sentidos.

O Tudo às vezes é o vazio

Vazio preenche nada

que não quer saber do tudo

O tudo é o infinito

Infinito enquanto dure

 

Mas o mistério da existência

Não está no tudo

nem no nada

Está no vazio da existência

Esse poema foi escrito depois, num momento de angústia e solidão, mas reflete um pouco do estado bipolar da minha alma. A intensidade com que os sentimentos me invadem, a falta de racionalidade nas minhas escolhas passionais em um mundo tecnocrático e racionalista. A intensidade de uma simples conversa com Sandra me invadiu. No dia seguinte conheci sua pequena filha, de seis anos. Uma princesa, linda como a mãe, criada naquele paraíso do albergue, do Rio, de Santa Tereza. Sandra permaneceria grudada em meu coração por mais tempo que eu imaginaria. Mas eu tinha que continuar minhas pesquisas, apesar das poucas horas dormidas.

No Rio, como sempre, não foi possível pesquisar tudo que desejava. Tantos acervos, tanto material, ainda mais com duas pesquisas paralelas: Cordel e Mortos e Desaparecidos Políticos. O excesso. Mas passaram-se os dias, foi-se uma semana. Consegui ir à Academia Brasileira de Literatura de Cordel, e tive uma agradável conversa com o seu presidente, o sábio poeta Gonçalo Ferreira. Precisávamos de uma iniciativa para fixar o cordel em Minas. Precisávamos do ímpeto da juventude que eu tinha. Assumi o compromisso. Iria lutar por um projeto, uma cordelteca, um Centro de Referência em Belo Horizonte. Ele me apoiaria, assim como outros poetas. Sempre que voltei de uma viagem sozinho para o Rio, as coisas desandaram. E os projetos foram adiados. Mas não seria só o Rio dessa vez. Ainda iria a Juiz de Fora. Mas o tempo passava, o dinheiro acabava. Ainda bem que tinha o porto seguro do meu pai ali do lado, em JF. Nem tão seguro assim, eu descobriria.

Ainda conversei um pouco com o Darci no Rio, ele me contou que o filho do Allen Ginsberg, poeta beatnick, esteve hospedado lá. Que loucura aquele lugar, uma conhecia o Chico Science, outro o filho do Allen Ginsberg. Realmente ali era um lugar privilegiado. Pessoas bacanas e instigantes. Queria ficar mais, extrair o máximo possível delas. O máximo para a Sandra era bem alto. Mas será que ela poderia me ceder o que eu queria? Nunca saberia. A falta de coragem não nos trás as respostas. Mas deixa em aberto possibilidades futuras. O fato é que com a grana encurtada, parti, dormindo mal outra vez, para a rodoviária.

Paguei uns vinte e cinco reais de táxi, não queria ir de lotação com coisas de valor que não eram minhas, além do peso dos livros comprados. Chegando lá na rodoviária vi que só tinha dinheiro para comprar a passagem mais barata. O ônibus só partiria duas horas mais tarde, sem ar condicionado. Ossos do ofício, era o que podia ser feito, o orgulho não me deixava ligar para alguém e pedir uma grana emprestada. Fiquei lá sentado, às vezes perambulando, observando as pessoas, ora lendo, ora escrevendo. Um “flaneur”, vagando na rodoviária. E os pensamentos voavam às vezes. Pensava se devia ter tentado ir mais a fundo com a Sandra, ou se teria agido correto, já que tinha um compromisso e gostava muito da pessoa. Mas poderia não ver nunca mais Sandra, e meu namoro poderia terminar. Ou ainda, se a traição ocorreu em pensamentos, ela já não seria traição? O ato só é fato quando real, ou quando nas idéias ele já existe concretamente? Essas idéias botavam minha cabeça a mil. Certa vez um colega tinha me dito que a verdade só existe quando ela é falada. Apenas a enunciação cria um fato? Muito objetivista essa perspectiva, mas bem adequada a canalhices de toda espécie. Mas eu não era um canalha, nem um pragmático, era romântico, sonhador, utópico. Uma flanada interrompe meus pensamentos, uma bela figura que passa. E foi-se. De volta às indagações, vi que era chegada a hora de mais uma partida. Partia do Rio com o coração pleno, a mente confusa, a saudade antes mesmo da partida daquela cidade com a qual mantive promíscuas e atribuladas relações.

 

Comentários
  • Bill Braga 4739 dias atrás

    Oi Nadia,

    poxa, obrigado por me acompanhar em mais esta história, de tantas que a vida nos proporcionou… companhias como a tua fazem muito bem, muito obrigado mesmo…

    A visita vai acontecer em breve, beijos a todos aí!

  • Nádia Campos 4741 dias atrás

    BILL QUERIDO,
    PARABÉNS PELO DOM DA ESCRITA QUE NOS CATIVA E NOS FAZ QUERER CONTINUAR ACOMPANHANDO SUA HISTÓRIA!
    GOSTO MUITO DA SUA FRANQUEZA. ESTAMOS ESPERANDO SUA VISITA!!!
    BJS!

  • Bill Braga 4743 dias atrás

    Mãe… Isto tudo que você disse, vem de casa, da formação… Você é parte fundamental deste processo, não só pelo apoio nos momentos narrados, mas pelo antes e pelo depois… E porque não saborearmos juntos uma ótima limonada, e sim lamentarmos o amargor do limão, que não tem culpa de ter nascido limão? Obrigado pelas palavras, que emocionam, e sim, nossa história continua, nas memórias, na ficção e na vida, sempre juntos ad eternum!

  • Luciana -mãe 4744 dias atrás

    É cada vez mais impressionante perceber, através da sua narrativa tão bem escrita e apesar de todo sofrimento que de certa forma revivemos através dela (e nós sabemos o tamanho deste sofrimento) como você foi capaz de transformar tudo isto em maturidade, consciência de você e do mundo, generosidade e, porque não, bom humor. Em suma, a vida te deu um limão e você fez e continua fazendo uma deliciosa limonada! Tenho muito orgulho de você. Beijos e vamos em frente com a nossa história, sempre juntos.

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