Com 23 anos, já tinha me formado em História há um ano, e estava com o mestrado em curso. Exatamente esse mestrado que me levou à viagem. Ao Rio de Janeiro. Nessa época ainda trabalhava em um projeto de pesquisa na universidade, e aliando meus interesses de pesquisa e as necessidades desse projeto, resolvi ir ao Rio de Janeiro.
Essa cidade sempre me cativara. Ambígua, paradoxal, com suas belezas naturais e desigualdades sociais extravagantes. Já tinha ido para o Rio em algumas ocasiões, uma com amigos, ficando em Copacabana, outra para o histórico show dos Rolling Stones nessa praia, voltando logo após, e ainda outra a trabalho, para uma apresentação na PUC-Rio, em que fiquei no Centro, próximo à Lapa. Todas essas viagens foram rápidas e não tive a possibilidade de conhecer as profundezas da cidade, suas entranhas. Talvez por em todas elas estar acompanhado de muitos amigos. Sempre fui uma pessoa rodeada de amigos, e só de saber que eles não iriam me abandonar nessa clínica sem os ver, meu coração já se acalentava. Voltemos à fatídica viagem.
Dessa vez, viajaria sozinho. Já tinha tido uma experiência muito boa de viajar sozinho, em outra pesquisa no Ceará. Quando se viaja sozinho é que se aprende a conhecer e conviver consigo próprio. A disciplina necessária para pesquisar sem ter um chefe, a liberdade de organizar seus próprios horários. Liberdade porque se tem o dinheiro necessário e pode-se definir como e com que gastá-lo. Uma definição bem capitalista de uma palavra tão bela que vem se esvaindo de significado. Liberdade banalizou-se, sem que entendessem o essencial do seu sentido. Quando se está internado, isso fica bem claro.
O plano inicial era ficar uma semana na Cidade Maravilhosa. Talvez não fosse o suficiente para levantar tudo que era necessário nas duas pesquisas, mas era o tempo que o dinheiro que tinha me permitia ficar. Fui de ônibus, sempre aquela viagem estranha, ao lado de uma pessoa desconhecida. Mas com meus livros e minha música sempre me virei bem. Não há solidão quando há palavras. A solidão total é a ausência de palavras. Em todos os momentos da minha vida, sempre tive uma trilha sonora. Até eu conhecer aquele que comporia a grande trilha da minha vida: Vinicius de Moraes. Minha relação com esse poeta vai além de meras palavras encadeadas. É como se o conhecesse, como se ele me aconselhasse, me confortasse, bebesse comigo. Na realidade, ele certamente me acompanhou enquanto estive internado, e ainda me aconselha quais palavras usar.
Vinicius, o Rio, saudade, paixão. Combinações deliciosamente explosivas. A saudade era da minha namorada na época. Havia alguns meses que estávamos juntos, nos conhecemos em um Congresso, um amor arrebatador e intenso. Nos envolvemos com uma rapidez impressionante. Mas essa era, ou ainda é?, uma das minhas principais características. A paixão com o mundo, a maneira apressada de viver tudo intensamente antes que acabe, a mania de me entregar de coração aberto para as pessoas. É um modo poético de existência. Exagerado, diria Cazuza. Mas as coisas boas da vida não estariam exatamente nos exageros? Descobri que até com eles é preciso uma dose de moderação.
Pois cheguei ao Rio e fui direto para o albergue em que iria ficar, no bairro mais charmoso e boêmio de Santa Tereza. O albergue era numa casa grande, antiga. Toquei a campainha, mas como eram seis horas da manhã, ninguém atendeu. Fiquei por ali, sentado em um banco de pedra, rabiscando alguns pensamentos iniciais da viagem. Depois de cerca de meia hora, jogando PSP e escrevendo, toquei novamente a campainha, e surgiu um sujeito ímpar, atendendo à porta. Era o Darci, grande figura, um beatnik perdido no tempo e no espaço naquela cidade. Travamos uma pequena conversa inicial, fiz o check-in, e fui para o quarto. Para chegar nele tinha de se subir uma escada em espiral, de madeira, que fazia aqueles barulhos, estalos, típicos de casas antigas. O quarto amplo, com três beliches e um banheiro, dois cômodos, estava vazio. Ficaria ali naquela imensidão de quarto sozinho. Na realidade havia apenas um casal de ingleses hospedados ali, que iria embora na data da minha chegada. Ficaríamos ali eu, Darci, as duas empregadas, a dona, Sandra, e sua filha. Sobre elas, mais tarde lhes contarei.
Depois daquela primeira incursão, tomei um banho, a temperatura estava acima dos trinta e cinco graus. Comi algumas frutas e tomei um café, e parti para o primeiro local de pesquisa, a Academia Brasileira de Literatura de Cordel. Uma pequena caminhada por Santa Tereza até a rua Leopoldo Fróes. Incrustado no pé da montanha, é um grande prazer caminhar nesse bairro, cheio de largos, e com os simpáticos e nostálgicos trilhos do bonde, que ali ainda subsiste.
Lá chegando, estava fechada a Academia. Como já tinha estado ali cerca de um ano antes, já sabia que o poeta Gonçalo Ferreira, presidente da ABLC, morava na casa logo em cima. Toquei a campainha algumas vezes, mas como foram vãs tentativas, resolvi retornar ao albergue. Tomei mais algumas doses de café, e resolvi partir em busca da outra pesquisa que me levara ao Rio de Janeiro. Era sobre a esquerda na época do regime militar, as organizações, alguns líderes, tinha que encontrar algum documento, quem sabe imagens sobre eles. Já tinha montado um mapa de pesquisa, com as instituições onde deveria ir. No albergue, mais um breve bate-papo com o Darci, e ele me deu as coordenadas para pegar o metrô e ir ao próximo destino, Botafogo, onde ficava o Arquivo Público.
Sei que esmiúço por demais os detalhes, mas é que para entender o inintendível, os detalhes têm sua dose de importância. Cada um deles pode ter ajudado a compor a trama que me trouxe a essa clínica. Esforço-me por lembrar das histórias por completo, mas sei que estou fadado a esquecer algo importante. O importante não está na consciência, mas no inconsciente. É nos meandros da memória que podem estar as pistas para me entender, e entender a situação em que me encontro.
Comentários
gabriel, continuo acompanhando os seus ótimos textos, sempre “querendo mais”…. muito legal esta sua “viagem ao seu interior”. grandes descobertas……Quisera Deus que todos fizessem isto…. beijão e boa sorte!
Ei vózinha!
Que bom que está gostando de viajar ao meu interior.. Realmente cada um de nós é um universo, e os textos buscam revelear um pouco do meu. Que bom que tem agradado! Escrever é conhecer a si mesmo e revelar-se, não é?
beijos, e obrigado por acompanhar-me!
´Biel, vamos de novo pelos caminhos da memória. Acho bom quando o narrador se lembra de detalhes,que são ,como voce disse, importantes para se formar ideia do todo. Continuarei em sua companhia, se lhe for agradavel partilhar comigo esta procura.Beijin Vó
É vó, detalhes fazem toda a diferença… continue sim, tua companhia é fundamental…. Obrigado por ela, beijos vovó..
Estou ansiosa por mais… Adoro vc, seus escritos e tudo que eles representam. Bjão.
Ooo Fê, já já continua a jornada… Adoro tuas palavras, adoro tua companhia ao longo desta e de outras jornadas! obrigado pela leitura! beijos
ueh! ja acabou?
Opa! Acabou só uma parte.. Continua em breve… Obrigado por me acompanhar nesta jornada!
Oi Gabriel, quanto tempo, não é? Acho que desde a leitada de 2000… Vc, seu irmão tb… Bem, parabéns pelos seus escritos, realmente vc tem esse talento. Aqui todos se encantaram . Paulo Jorge e família. Ficaremos aguardando novidades. Beijos
Oi Carol.. muito tempo sim, mais de dez anos… desde a leitada.. Aina tenho no meu quarto aquela foto que vocês enviaram, com o recado atrás você e a Paulinha.. A lembrança tá bem preservada através dela… Muito obrigado a todos aí pela leitura, pelo comentário e o encantamento! Fico muito feliz que tenham gostado, em breve virá ao ar a continuação, aviso a vocês! beijos