Requiem para um rio

Publicado por Antonio Ângelo 2 de dezembro de 2015
rio doce

rio doce

Nascendo das entranhas férreas de Minas,
segue rumo aos abismos do Atlântico
o rio que doce era
e que hoje resta gravemente ferido.

Quando bandeirantes nos seiscentos ali chegaram –
ouro descobrindo no Ribeirão do Carmo –
viram caudalosos veios em meio às serras
a fluir majestosos rumo ao norte.
Desde então instalou-se o ininterrupto revolver do solo
em busca dos metais ambicionados.

Ai de nós que o achávamos perene, invencível,
proporcionando fertilidade aos solos geraes,
capaz de a tudo resistir:
desmates, rejeitos industriais, minerações,
esgotos lançados com desleixo ao seu leito!

Para ele acorrem o Rio de Peixe e o Sem Peixe,
o Piranga, o Rio Casca e outros inumeráveis cursos
incapazes de limpar as sujeiras de suas águas vilipendiadas.

Ao passar pelo Parque do Rio Doce –
onde íamos aos banhos em tórridos verões –
lagoas cedem-lhe parte do líquido precioso.
Mas o que podem contra o amarelo-ferrugem
a conspurcar matas ciliares, enseadas e praias?

Mais abaixo, Valadares, Galiléia, Resplendor,
Colatina, Linhares e inúmeros outros povoados
em que populações estupefatas
permanecem aturdidas ante as correntes barrentas.

Que sina restará aos pescadores
que de seus peixes tiravam sustento?
Às famílias que tiveram moradias invadidas pelo lamaçal
que destruiu tudo que ali detinham
e não sabem como acomodar as crianças?

Morenas lavadeiras estáticas nos barrancos
observam consternadas a imensa enxurrada.
Por que tanto descuido com a natureza?
Por que tanta afronta?
Por que o rio pródigo em vida
retém agora insepultos cadáveres?

Dele não cuidamos, nem sequer nos apercebemos
de que homens gananciosos e sem bandeira
forjariam em escritórios refrigerados negócios suspeitos
na ganância por moedas estrangeiras.

Até o oceano arrasta-se viscoso
o que antes deslizava reluzente nas manhãs,
agora a despejar em praias distantes,
misturados a terra e pedras, ouro e ferro da Minas depredada.

Enquanto fica para trás o rastro de escombros –
à própria sorte deixando entregues natureza, humanos, animais –
transmudando em luto e desespero
o hemorrágico fluxo em que o Doce agoniza.

Comentários
  • Wesley 3279 dias atrás

    Não é outro o cenário. É este, real, excruciante. Os rejeitos desceram aqui perto e pude vê-los ferruginosos em Governador Valadares. Trouxeram o caos e a perplexidade. Levam consigo nossas últimas esperanças, como levaram sonhos e almas, até o mar distante. Não é outro o mundo em que vivemos. É este de que nos fala AA, viscoso, autodestrutivo, velho e ruim como o capeta.

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