vai ao terceiro andar
conta degrau por degrau
dezessete por andar
até o quinquagésimo primeiro
onde fica o apartamento.
Não toca a campainha
abre a porta e silenciosamente
adentra a sala
onde a televisão ligada
ninguém assiste.
Passa pela penumbra do corredor
cheiro de sabonete barato
pálida luz entrando
pelo basculante do banheiro.
Mais alguns passos de gato
chega ao quarto de casal.
Na cama dois corpos
em frenético entrelaçamento.
Volta atrás passo a passo
desce as escadas
sai à rua
onde a manhã digladia
com a impaciência dos carros.
Segue no passeio
um, dois, três quarteirões
até dobrar a esquina
já próximo ao escritório.
Lá, a insolência dos números
contas e mais contas.
Inútil tentar extirpar da memória
a cena insuportável
da mulher se entregando
ao motoboy da firma.
A aritmética embaralha-se
na mente atordoada.
Recomeça a contar:
um, dois, três, quatro, cinco.
Volta à rua
vira a esquina
sobe cinquenta e um degraus
abre a porta
atravessa o corredor.
Um, dois, três, quatro, cinco estampidos
misturam-se ao ruído
que vem do asfalto.
Comentários
Magistral, AA. Um conto dentro do poema. Quem dera se eu pudesse, se papai do céu me desse (tal maestria). Vai para a sala de troféus.
Mesmo contando tudo a sua volta, o contador não conseguiu contar até dez para evitar a violência. É a vingança e o machismo realçando a dor da decepção. Até o Título “noves fora” é interessante, pois no mesmo instante que tem muito, fica sem nada.
Encantador como pincela no poema detalhes e situações que só um artista consegue captar.
Parabéns!
É preciso ter veia de poeta para fazer poemas assim. Parabéns! Dá gosto ler e ter o final surpreendente.