Mundos Guimarães

Publicado por Antonio Ângelo 12 de fevereiro de 2015

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“Criptas onde o ar tem corpo de idade e a água forma pele muito fria,
e a escuridão se pega como uma coisa”

(Guimarães Rosa – O recado do morro)

Belo Horizonte acorda chuvosa.
Da janela vejo ao longe semi-ocultas
encostas por onde casebres se espalham
de forma promíscua,
degeneração de matriz cancerosa.

Sufoca-me a metrópole.
Na estante alcanço Guimarães Rosa
onde encontrar cheiros e climas:
comunhão possível com raízes interiores,
confluência de riachos, matas e trilhas.

…córregos fugindo brenhas adentro, buritizais,
patuléia miúda (muito trabalho e rala existência),
brancas noites de plenilúnio, reboliço de brisas flauteando no bambuzal,
terras altas alem do Urucuia, taperas em vilarejos desabitados,
garrixas cochichando no beiral do telhado,
manhã invernosa, dois cabras sentados à porta tiritando de febre e ciúmes
(“Esta noite sonhei com ela, bonita como no dia do casamento” – diz um),
quintais onde a erva daninha se espalha, tiriricas,
o manchão laranja do cipó-de-são-joão no barranco,
vento viajeiro ondulando a extensão do capim gordura,
mureta de pedras, bois no pasto, ecos de tiros nos socavões;
sol a pino: um esmorecimento, um não-querer nada,
árvores ressequidas erguendo raquíticos galhos
contra o céu de azul coruscante –
urubus em re-círculos bailarinos no anil distante –
zunir de varejeiras, brilhos azuis de asinhas,
rios sem margem, pretume de barco se esquivando no breu da noite;
moça na janela, boiada passando
(cavaleiro olha-olhando espichado,
sonhando com o alvo véu de filó, rendas, camisa de cassa branca,
e, ao depois, filhos, gadinho, galinhas no terreiro,
horta, pomar e um cachorro a lhes guardar o sono).

No meio da rua o redemoinho ,
e dentro dele – ou vigindo nos crespos do homem – o sem nome.
No Pirapora, Diadorim não se desveste,
atento aos despistes de Riobaldo…
Corguinho deitado, vereda sem nome,
Riobaldo oferece mimo, pedra safira de Arassuaí,
que de coração Diadorim agradece –
esperar até acerto de contas com Joca Ramiro;
Riobaldo conta favas e refavas
e pensa na moça clara da Fazenda Santa Catarina –
(e a outra, para todos formosa, de saia cor-de-limão,
florzinha amarela do chão, prostitutriz, Nhorinhá).

Por algum tempo, Belo Horizonte é sombra esquecida,
mas que forja matreiramente suas ruindades
ruminando segundas-feiras desenxabidas.
Eu divirjo – resistencioso às sovinices do tempo –
e me esquivo de retornar à janela,
na desvontade de presenciar o mundo.

Comentários
  • luiz gonzaga de carvalho 3598 dias atrás

    “Tá por riba”, Angelo. Poesia é isso. É do fato tirar a versão, lírica, arrebatadora, que contamina, como um bichinho que entra pelas veias.
    Pode publicar. É poesia.
    Abraços, Luiz.

  • Milton Tavares Campos 3604 dias atrás

    Poeta rimando em riba de poeta, eita riqueza!

  • Wesley Pioest 3604 dias atrás

    Este o meu amigo, orgulho da cambada, poeta do e no interior, gente grande, altivo, com a caneta desbravando o sertão que vai na alma, a madrugada do mundo, tudo por fazer, e, não fosse pouco, apenas um sonho, dele, meu, nosso, a metrópole em ruínas, o futuro escapando, a noite que se avizinha, lua que se esconde.

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