Minha cidadezinha do interior
por razões abstrusas –
por mais que aleguem motivos estratégicos –
tamparam-na com imenso lago
para fazer uma hidrelétrica.
Minha cidade tão bucólica
com suas casinhas simples,
maravilhosas praças desnudas
onde parques e circos se assentavam,
minha cidade de ruas sem calçamento
onde nas enxurradas criávamos represas
para nossos barcos de papel,
não sei que loucos desígnios
permitiram que a afogassem.
Mas há um deus
que protege as pequenas cidades
e hoje com a seca prolongada
volto a caminhar em suas vielas.
Ali a casa onde morei
com seu imenso quintal
sob a curvatura do céu
onde navegavam nuvens;
árvores frutíferas ou matos rasteiros
entreteciam a trama que formava
o delicado tecido de minha infância.
Aquela trilha que desce rumo à várzea
onde num plano à beira-rio
eu e meus companheiros
jogávamos nossas peladas
em tardes escaldantes.
No mato frente à minha casa
armávamos cabanas,
corríamos em meio a arbustos
e tentávamos imitar os heróis
das matinês de domingo.
A igrejinha em que fui coroinha
e onde um padre bravo
me obrigou a apanhar do tapete
as brasas que derrubara do turíbulo
(“cata, cata, cata” – ecoam ainda suas palavras
como uma catraca em minha memória).
Posto de policia, cadeia de poucos presidiários
que fumavam nas janelas gradeadas
apreciando o ir e vir dos homens livres;
na esquina, armazém do Seu Cândido
em que nos fins de semana
meu pai comprava garrafas de guaraná
(esverdeadas, contendo o líquido dourado)
que tomávamos com entusiasmo infantil,
bolhinhas espocando no céu da boca.
Ainda no Largo da Igreja destroços do coreto:
uns olhos em noite junina,
pegar nas mãos (quão alvas!),
o primeiro abraço,
a descoberta dos lábios.
Continuo a caminhar
e tudo é lembrança
como em um filme mudo
em que na paisagem se adivinha fantasmas
de um tempo – este sim –
definitivamente submerso.
Comentários
Muito gostoso reviver momentos da infância semelhante aos resgatados no poema. Obrigada Antonio Ângelo por proporcionar esse sentimento.
Um matiz diferente na poesia (esta cenográfica) alta de antonio angelo. Surpreendeu-me o vasculhar amiúde do passado (bem vinda novidade!), e já quedo-me a aguardar vindouras colheitas. Na terra angeliana, poeta melhor não há.
A natureza te presenteou de forma a reviver este cenário e você nos permitiu compartilhar desde sentimento e emoção.