Carta a Van Gogh

Publicado por Antonio Ângelo 8 de maio de 2018

Para minha irmã Dulciméia

Em algum lugar, em uma de suas cartas, Van Gogh, você escreveu,
certamente para seu querido irmão Theo:
“o Mediterrâneo tem uma cor igual à das cavalas,
ou seja, mutante; nunca se sabe se é verde ou violeta,
nunca se sabe se é azul…”

E ainda: “O céu de um azul profundo
estava salpicado por nuvens de um azul ainda mais profundo
que o azul fundamental de um cobalto intenso,
e por outras de um azul mais claro,
como a alvura azulada de vias lácteas.
No fundo azul as estrelas cintilavam claras,
esverdeadas, amarelas, brancas, rosas, mais claras,
adiamantadas mais como pedras preciosas,
que para nós – mesmo em Paris –
seria o caso de dizer: opalas, esmeraldas,
lápis-lazúli, rubis, safiras.”

Oh doce e sofrido Van Gogh,
que em sua generosa transcendência
mais preferia se ferir que aos outros maltratar,
que pela prima amada foi capaz de colocar a mão
na chama acesa de uma vela,
que sorte a nossa de o termos tido
exilado nas cidades, perdido nos campos
– ainda que às custas de sofrimento inaudito -,
com sua sensibilidade atento ao mundo,
amando atabalhoadamente suas mulheres,
elas também pouco bafejadas pela sorte,
sofridas, perdidas, prostituídas!

Se tanta poesia nos legou com seus pincéis milagrosos,
vemos que também nos escritos transparecia a consciência
do mundo entre sombras e cores que o cercava:
cheio de atrativos, beleza, mistérios e melancolia,
que de uma forma inigualável transformou em quadros
a nos emocionar e a revelar que sua loucura
era em verdade um caleidoscópio através do qual
nos permitiria – a nós pobres reféns da obviedade -,
ver alem do que nos dita a incompletude do mundo real.

Quando diante do trigal reverberando amarelos
sobre o qual corvos esvoaçam
decidiu partir para o recurso definitivo
a libertá-lo das correntes da loucura,
por que sua mão não susteve um raio de lucidez
do quanto você era importante enquanto estava a criar
e a deixar para a posteridade uma herança
carregada da mais humana e tocante beleza?

Comentários
  • Dulcimeia 2411 dias atrás

    Que beleza! O poeta das palavras que caminha junto às maravilhas do poeta das cores, que eu amo! Me encantou! Grande abraço.

  • Wesley 2411 dias atrás

    Digo-lhe, caro poeta, que em Van Gogh há um pouco de nós, diluídos em sua paleta, como há também em sua poesia um sopro de lucidez que nos arrebata para a compreensão do enigma que só se decifra na arte ou no amor, na extrema-unção ou na loucura, no mais tranquilo céu ou no frenesi infernal dos dias que nos habitam. Para o bem ou para o mal. Para ser ou para não ser.

  • Marcos Apolinário Santana 2417 dias atrás

    Que magnífico mergulho no fino fio de navalha entre a arte e a loucura. A lucidez desfaz sonhos apartados. Dul merece esta obra prima.

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