Com o tempo, as palavras vão-se gastando, puindo com o uso, e seu sentido profundo fica oculto sob espessa camada de entulho. É o caso do adjetivo “católico”.
Muitos brasileiros pensam que ser “católico” é não ser protestante, é não ser espírita, é não ser macumbeiro… Ou seja, a palavra é compreendida sob um modo de exclusão. Nada mais falso.
Na sinagoga judaica, no tempo de Jesus, reuniam-se pessoas com uma afinidade específica: os ex-escravos (sinagoga dos Libertos), os que provinham da mesma região (sinagoga dos Alexandrinos, dos Tarsiotas…), os que exerciam a mesma profissão, os que moravam no mesmo bairro.
Já nas primeiras comunidades cristãs, foi abolida toda espécie de separação e de particularismo: esta é a marca do católico. Em sua raiz grega – e foi assim que os primeiros católicos entendiam a palavra – “católico” vem da união do prefixo “kathà”, concernente a, na direção de, e do substantivo “holòs”, todo, total, universal. No meio católico, o Evangelho não pode estar associado a determinada etnia, a determinada nação, a determinado partido. Ser católico é estar aberto a todos, sem exceção.
Em seu livro “A vida cotidiana dos primeiros cristãos” [Paulus, 1997], o patrologista A.-G. Hamman escreve: “A lista dos bispos que se sucedem em Roma, depois do apóstolo Pedro, é instrutiva porque penetra na vida concreta da comunidade, aberta às influências mais diversas e às vezes contraditórias, cadinho no qual se fundem as nacionalidades e os nacionalismos. Entre os catorze sucessores de Pedro, até o fim do século II, quatro são romanos, três de origem italiana, cinco gregos, um ex-anacoreta, outro Higino, filósofo; Aniceto é de Emesa, a atual Horms da Síria; Vítor, que fecha a lista, é africano, o primeiro a escrever em latim em Roma”.
Esta “catolicidade” transparece visivelmente na lista dos novos cardeais escolhidos pelo Papa Francisco em 2015, incluindo Igrejas locais de todos os quadrantes: Uruguai, México, Panamá, Colômbia, Argentina, Nova Zelândia, Etiópia, Espanha, França, Tailândia, Portugal, Itália, Vietnam, Myanmar, Alemanha, Moçambique, Cabo Verde e Ilhas de Tonga. Nenhum continente foi excluído. A pluralidade linguística e cultural é a mais ampla possível.
Voltando a Hamman, podemos ler: “Essa sucessão no papado reflete bem a extensão do cristianismo nos dois primeiros séculos. A Ásia é representada por um só titular; os gregos, por um terço. A primeira Igreja de Roma é tão pouco latina quanto possível. Os cristãos falam o grego. Nela sírios, asiáticos e gregos apátridas acolheram com fervor a mensagem do Evangelho. O primeiro núcleo é formado por eles. Seguem-se autóctones e africanos”.
Há distância entre o ideal e a realidade? Claro que sim. Basta olhar em volta. Os paroquianos enviam ao bispo um abaixo-assinado para impedir a transferência do atual pároco. Isto é, os interesses locais estão acima dos interesses diocesanos. Meu amigo padre, brasileiro e branco, vai em missão para Guiné-Bissau, onde os católicos negros o chamam de… “branco”. Ou seja, o aspecto racial se sobrepõe ao espiritual. Um padre brasileiro parte em missão para os indígenas do Peru; os brasileiros discordam, afirmando que também aqui temos indígenas. Logo se vê, já não somos católicos, pois o nacional vai acima do universal.
Divisões ideológicas, pastorais fechadas em si mesmas, grupinhos na paróquia, jogos de poder, tentativas de impor a própria visão, críticas ao diferente: nada menos católico… nada mais sectário…