Maria, Mãe de Deus, teve outros filhos? Em autêntico “furo” exegético, a popular revista “Superinteressante” [janeiro/2-17], da Editora Abril, jura que sim. E, para provar sua tese, nada inovadora, faz exatamente o que o capeta fez ao tentar Jesus no deserto: cita a Sagrada Escritura.
Assinada por Reinaldo José Lopes, a matéria reza assim: “Uma interpretação literal de uma passagem do Evangelho de Marcos dá a entender que Maria teve ao menos sete crianças. Nesse trecho do livro, Jesus, já adulto, ao visitar Nazaré durante sua pregação itinerante, deixa seus conterrâneos boquiabertos com seus discursos. Eles, então, teriam comentado: ‘Não é este o tékton, o filho de Maria, irmão de Tiago, Joset, Judas e Simão? E as suas irmãs não estão aqui entre nós?’ Se você fizer a conta, verá que teríamos aí cinco filhos (incluindo Jesus) e ao menos duas mulheres”. (P. 33.)
A citação é de Marcos 6,3. O nobre exegeta da Abril podia ter citado, se quisesse jogar limpo, outras passagens do Evangelho. Por exemplo, Mt 27,5, em plena crucifixão de Jesus: “Estavam ali, a observar de longe […], Maria de Mágdala, Maria mãe de Tiago e de José, e a mãe dos filhos de Zebedeu”. A Maria aqui citada não é a esposa de José, mas de Cléofas, irmã da Mãe de Jesus. Aliás, em Jo 19,25, está escrito: “Estavam junto à cruz de Jesus sua mãe, a irmã de sua mãe, Maria (esposa) de Cléofas, e Maria de Mágdala”.
Se a reportagem da revista especializada em Sagrada Escritura estivesse correta, estaríamos de um fato notável: dois homens (Tiago e José) nascidos de duas mães ao mesmo tempo.
Comentando o assunto, um especialista (agora, sim!), o monge beneditino Dom Estêvão Bettencourt, observava: “Cléofas, portanto, e Maria de Cléofas eram os genitores de Tiago e José; tinham um terceiro filho, Judas, o qual, no início da sua epístola, se apresenta como irmão de Tiago (este Tiago só pode ser o filho de Cléofas, não o de Zebedeu), pois não era irmão de João Evangelista; confira-se Mt 13,55, onde Tiago, Judas e José, não João, são chamados irmãos.
Se Jesus tivesse vários irmãos que pudessem cuidar de Maria, seria também difícil de explicar o fato de que, na cruz, logo antes de morrer, Jesus confiou sua Mãe ao apóstolo João (cf. 19,26ss). Só o fato de ser filho único justifica essa “entrega” tão comovida: “Eis a tua mãe!”
Por outro lado, o exímio pesquisador da “Superinteressante” faz questão de contestar um conhecimento de domínio público, ou seja, o sentido da palavra “irmão” na sociedade que falava hebraico e aramaico, idiomas que não possuem termos específicos para “detalhar” os parentes, como primos e primas, englobando todos eles na expressão “irmãos”.
Podemos ler em uma nota da Bíblia em Tradução Ecumênica, a TEB, dirigida, em sua edição original, por dois especialistas protestantes e dois católicos: “Na Bíblia, como ainda hoje no Oriente, a palavra irmãos pode designar tanto os filhos da mesma mãe, como os parentes próximos”. (Cf. Gn 13,8; 14,16; 29,15; Lv 10,4; 1Cr 23,22.) Na primeira destas citações, por exemplo, Abraão se dirige a Lot, seu sobrinho, dizendo: “Somos irmãos”.
Assim, tomar ao pé da letra o sentido da palavra “irmãos” nos levaria a grandes absurdos, como nos exemplos abaixo:
– 1Cr 7,5: “Seus irmãos, dentre todas as famílias de Issacar, formavam um total de 87.000 homens valorosos, inscritos nas genealogias…”
– Ne 11,12: “… assim como os irmãos deles que trabalhavam na Casa de Deus: 822.”
Nunca é demais lembrar que, se Maria, Mãe de Jesus, tivesse sido mãe de outros filhos (coisa que a Tradição cristã jamais imaginou), isto não teria sido nenhum demérito, pois a maternidade em Israel era a máxima honra para a mulher, enquanto a esterilidade era a suprema humilhação. E foi exatamente em ambiente cristão que a figura da mulher-mãe atingiu o seu ponto mais alto de estima e de louvor.
Assim, a Igreja tem apenas um motivo para negar a existência de outros irmãos para Jesus: eles não existiram…
Comentários
Uma pergunta para o autor que é teólogo católico, no momento da anunciação do anjo Gabriel a Maria de sua escolha para ser mãe do enviado de Deus, ela e José eram ainda noivos? Isso para mim explica uma situação que é mal entendida por falta de esclarecimentos.
Só se pode afirmar o que consta dos Evangelhos.
O Evangelho de Lucas registra que “o anjo Gabriel foi enviado por Deus […] a uma virgem, PROMETIDA A UM HOMEM [no texto grego original, ‘emnesteuménen andri’] de nome José, da casa de Davi”. (Cf. Lucas 1,26-27.)
O Evangelho de Mateus, ao fim da genealogia de Jesus, anota que “sua mãe, Maria, estava PROMETIDA A JOSÉ [no texto grego, ‘mnesteutheísis toi Ioséph’]. Antes que viessem a morar juntos, ocorreu que ela se achou grávida pela ação do Espírito Santo”. (Cf. Mateus 1,18.)
Lembrar que, na Palestina da época, o noivado era um compromisso tão sério que, em caso de óbito do noivo, a noiva passava a vestir-se como viúva e convivia com as demais viúvas. Uma noiva adúltera, se acusada pelo noivo, sofria a pena de lapidação (cf. João 8,1-11).