Quando jovem, meu pai viveu em Mendes, RJ, onde trabalhou no Frigorífico Anglo, na fábrica de papel e no pequeno comércio de seu tio Alexandre Lenzi. Entre suas recordações, ele falava sobre os sabiás da região, comparando seu canto com as vozes dos sabiás de Minduri, MG, onde meu pai viveu 61 anos, até nos deixar em 2005.
Segundo ele, os sabiás de Mendes tinham um canto mais rico que os sabiás de Minas Gerais. Eu apenas ouvia, sem retrucar, mas atribuía sua avaliação às lembranças da juventude.
Afinal, o próprio Gonçalves Dias já realçara o contraste entre nossas aves e as aves da Europa, quando ele se sentira desterrado da pátria, durante seus estudos em Coimbra, Portugal. Foi quando o poeta maranhense compôs a célebre “Canção do Exílio”, publicada em Primeiros Cantos, 1847, cujos versos acabaram incluídos na letra do Hino Nacional Brasileiro:
“Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá;
As aves, que aqui gorjeiam,
Não gorjeiam como lá.
Nosso céu tem mais estrelas,
Nossas várzeas têm mais flores,
Nossos bosques têm mais vida,
Nossa vida mais amores.
Em cismar, sozinho, à noite,
Mais prazer eu encontro lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.”
Ora, recentemente estive em Mendes, pregando um retiro no Foyer de Charité, e ouvi atentamente os sabiás da região. Anos antes, participando de um acampamento de Carnaval em Secretário, próximo a Petrópolis, com 700 rapazes e moças, eu já verificara que meu pai tinha razão. Os sabiás-laranjeira do Estado do Rio entoam um canto de melodia mais rica, acrescentando à partitura básica vários ornamentos, umas volatas e uns pizzicatos que o sabiá mineiro decidiu economizar…
Mas isto são apenas divagações sentimentais. O que está na minha cabeça é que a música brasileira tem sua índole própria, derivada de quatro séculos de contribuição de nativos e imigrantes. Flauta, cavaquinho e violão. Zabumba, ferrinho e sanfona. E uma quase incontável variedade de gêneros populares, como o baião e a ciranda, cururu e catira, jongo e congado, moda e calango, fandango e são gonçalo, coco e embolada, meia quadra e galope, frevo e rancheira, samba e chimarrita – e paro por aqui por absoluta falta de espaço.
Quando, porém, o católico brasileiro entra na igreja, ele é forçado a se esquecer de todo este rico acervo musical para consumir nas celebrações uma detestável invasão de música estrangeira, hoje batizada de gospel. Em vão o episcopado brasileiro tem exortado nossos compositores e equipes de canto a adotarem nossos ritmos e gêneros musicais. Um preguiçoso espírito de imitação insiste em copiar da América do Norte um modelo choroso de musica sentimental que nada tem a ver com a alma brasileira.
Notável exceção é a “Missa Amazônica”, gravada pelo grupo Imbaúba, de Manaus. As composições de Celdo Braga trazem a profunda marca do meio amazonense. No Ofertório, a letra diz:
“Eu te ofereço o desfilar das piracemas,
subindo o rio para a vida renovar,
minha canoa, lagos e igarapés,
todos os rios que ainda hei de navegar.”
Os instrumentos musicais utilizados pelo grupo são fabricados em madeira da floresta amazônica: bandolins, violinha e violão cedidos pela OELA – Oficina Escola de Lutheria da Amazônia. Os ritmos e as harmonias regionais chegam a comover o ouvinte pelo impacto da “cor local”.
Ao apresentar o grupo, o Bispo auxiliar de Manaus, Dom Sebastião Bandeira Coelho, assim escrevia: “E o Verbo se fez carne e armou sua maloca na Amazônia. Tomou o rosto de curumim, banhado nas águas barrentas de seus rios, ou nas águas negras como a escuridão, iluminadas pelos raios de sol”.
Outro belo trabalho foi realizado pela incansável Irmã Míria Koling, ICM, em 1987. Durante três meses, ela percorreu o interior goiano e o Nordeste brasileiro, ouvindo as comunidades pobres e recolhendo temas musicais populares. Daí nasceu o LP “O Senhor, Minha Festa”, gravado pela Comunidade Canção Nova e simplesmente ignorado por nossas equipes de música. Com o gostinho do Brasil, ali estão o xote e a marcha-rancho, a toada e a canção. O LP chegou ao luxo de trazer as partituras musicais, mas nossos grupos paroquiais não sabem ler música (muito menos, ler a clave de Fá!), apenas tocam de ouvido o que o rádio e a TV injetam em seus ouvidos.
Irmã Míria comentava: “Foram oito os Estados percorridos, na maioria cidades e povoados do interior, onde o progresso se esqueceu de chegar ou chegou para matar, mas onde se sente mais forte o pulsar de Deus. Comunidades vivas, e que encarnam a Palavra, partilham a vida, dividem os sofrimentos, somam as alegrias e esperanças, caminham apressando o dia da libertação”.
Enquanto isso, na cidade, inoculados pelo vírus estrangeiro, continuamos a cantar hinos que papagueiam os ianques, sob o impacto esmagador das baterias (esse ruidoso instrumento inventado para os salões de baile) que tornam impossível um clima de oração.
Duvido que os anjos cantem conosco…