No “Grande Sertão: Veredas”, Riobaldo Tatarana fala sobre “a faquinha minha que eu tinha, cabo de chifre de galheiro, que caiu num tanque de curtir, angico, barbatimão, lá sei… E pensou: amanhã eu tiro…” Estou citando de memória, pois vendi ao sebo toda a minha biblioteca quando deixei o magistério, em 1985, para me dedicar em tempo integral à evangelização.
Mas voltemos ao Rosa. O cangaceiro do romance manifesta sua admiração ao recuperar sua faquinha, pouco tempo depois, e verificar que a lâmina de metal tinha sido inteiramente roída. Só restara o cabo de chifre. E ele comenta: aquela aguinha parada, aparente morta, tinha feito esse trabalho de destruição. E prossegue filosofando a respeito de uma “verdade maior que a vida me ensinou”… As coisas não são apenas aquilo que parecem. Há um milagre por baixo da realidade.
Isto se aplica de modo especial à vida do homem. Por baixo da aparência, por trás da pele, pode estar acontecendo um milagre inesperado. Uma vida sempre pode mudar. Para melhor ou para pior. Nunca somos, estamos sendo…
Sempre me lembro daquele senhor que participou de um Encontro de Casais com Cristo e, logo depois, testemunhava:
– Eu me converti: toda noite, rezo um pai-nosso antes de dormir.
O leitor talvez diga que é muito pouco para ser considerado como conversão. Concordo. Mas já é um bom começo. Se, em seguida, ele der um aumento de salário à mocinha que serve de babá para seus filhos, melhor ainda. Se, mais adiante, ele e a esposa decidirem cancelar as férias e usar o dinheiro para dar uma bolsa de estudos a um seminarista pobre, já chegaram bem mais alto.
Conversão? Vida nova. Novo itinerário. Troca de valores. Adoção de novos objetivos. Como aquele professor universitário da Alsácia, famoso intérprete de J. S. Bach, formado em teologia e filosofia e pastor de sua igreja. Um dia, contempla a foto de um nativo do Congo e se sente interpelado por aquele olhar. Decidiu estudar medicina e, uma vez formado, “assaltou” os amigos de seu pai e carregou um navio com equipamentos e medicamentos suficientes para abrir um hospital no antigo Congo Belga. Estou falando de Albert Schweitzer, que ganharia o Prêmio Nobel da Paz em 1952.
Poderia falar de Saulo, ex-perseguidor dos cristãos, mas, depois de um encontro com Jesus na estrada de Damasco, mudou de vida e de nome, tornando-se o principal evangelizador de sua época. Poderia falar de Théodore Ratisbonne, judeu de nascimento, que descobre a mensagem católica e se torna o fundador da Congregação de Nossa Senhora de Sião.
Poderia, enfim, lembrar Jacques Fesh, um jovem rebelde condenado à morte pelo assassinato de um policial aos 24 anos de idade. Antes de enfrentar a guilhotina, ele tem uma experiência de Deus na prisão, chegando a escrever: “Quanto mal fui capaz de fazer à minha volta com o meu egoísmo e a minha inconsciência! Em vez de morrer estupidamente, vou poder oferecer a minha morte por aqueles que amo… Sei que, no momento presente, sou o mais privilegiado dos homens, porque o que me vão dar está em desproporção com o que me tiram, e, mesmo que pudesse, não trocaria a minha sorte pela de um rei do petróleo…”
Prefiro não falar de alguém que tenha escolhido o caminho contrário. Apenas concluo com meu espanto diante da liberdade humana, do livre arbítrio que nos foi concedido por um Deus que não quer escravos, mas filhos. No fundo, é apenas um Pai à espera do pródigo que eu sou. E esse milagre permanece possível…
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