Lembra-te de morrer! – era o refrão adotado por vários grupos religiosos desde a Idade Média até o Séc. XVIII. Não se trata de mera inclinação fúnebre, nem de uma romantização da morte, como na conhecida “Dança Macabra” de Camille Saint-Saëns, 1835-1921. Para diversas escolas de espiritualidade, a contemplação da morte era remédio salutar para muitos desvios correntes na vida humana, contribuindo para a cura das ilusões que nos prendem à matéria.
De fato, cercado de flores primaveris, seduzido pelo canto dos pássaros e pelo murmúrio das fontes, é quase inevitável entoar hinos ao sol e respirar bem fundo o hálito da vida. Só que este momento passa e não volta mais: “et fugit irrevocabile tempus” – afirma Virgílio em suas “Geórgicas”…
O homem ocidental sempre oscilou entre o polo do “carpe diem”, no movimento hedonista de “curtir” as alegrias do presente, indiferente ao futuro, e seu antípoda do inevitável encontro com a morte. A consciência do próprio fim contribui para ordenar os valores da pessoa e restaurar a sua hierarquia, ao contrapor o efêmero e o eterno, o relativo e o absoluto.
O “Livre Vermell” de Montserrat, na Catalunha, 1399, inclui um virelai, forma musical, intitulado “Ad mortem festinamus”, apressamo-nos para a morte, cuja estrofes faziam meditar:
“Vita brevis breviter in brevi finietur,
Mors venit velociter quae neminem veretur.”
Fala da vida breve que em breve chegará ao fim, pois rapidamente vem a morte que a ninguém respeita.
Minha mãe, Esther, do alto de seus 97 anos, já viúva e afligida por uma insuficiência renal crônica, mostrava-se consciente de tudo isso e, claramente, preparava-se para a morte. Um ano antes de morrer, mandou retirar sua pequena poupança e dividiu-a entre os três filhos. De tempos em tempos, passava-me algum objeto: uma tesoura de seus tempos de costureira… uma lupa de leitura utilizada por meu pai… Uma lanterna recuperada do fundo de uma velha gaveta… “Veja se serve pra você…”
Quando chegou sua hora, ela partiu em paz, livre para Deus.
Meu pai, Carlos, acompanhava atentamente o mundo esportivo. Em uma de minhas visitas, perguntou se eu poderia enviar-lhe o jornal das segundas-feiras com as matérias sobre jogos do fim de semana. Assim, toda segunda-feira, ao sair para o trabalho, eu passava pelo Minas Shopping, comprava o jornal “Lance” e o despachava pelo correio.
Quando compareci ao velório de meu pai, em novembro de 2005, verifiquei que ele não chegara a abrir o último envelope. Não deu tempo…
Tenho este envelope em meu arquivo. Não o abri. É um símbolo para mim. Nesta vida, não temos tempo para tudo…
Comentários
Crônica magnífica que nos faz refletir sobre a vida e principalmente sobre o seu final.
O tema abordou algo que apesar de fazer parte da vida de todos nós, ainda é considerado um tabu.
Achei a afirmação ___ Na vida não temos tempo para tudo onde o autor relembra a morte do pai, que deixou um envelope sem abrir.