Martírio: uma nova realidade?

Publicado por Antonio Carlos Santini 22 de janeiro de 2019

Martírio uma nova realidade

Nos tempos atuais, a Igreja reconhece um novo tipo de mártir: aquele que aceita arriscar sua vida para cuidar dos outros.

Na definição clássica dos mártires, o centro de tudo é o testemunho de fé que vai até a morte. Segundo o Catecismo da Igreja Católica, “o mártir dá testemunho de Cristo, morto e ressuscitado, ao qual está unido pela caridade. Dá testemunho da verdade da fé e da doutrina cristã. Enfrenta a morte num ato de fortaleza”. (CIC, 2473)

Desde o início da Igreja, as primeiras gerações cristãs registraram cuidadosamente as “Atas” dos seus mártires. Exemplo disto é o conhecido “Martirológio Romano”. Hoje em dia, porém, novos critérios se impõem para a definição do martírio. Um exemplo palpável é o dos numerosos leigos e religiosos, profissionais da saúde, que morreram recentemente enquanto cuidavam dos enfermos que contraíram o terrível vírus Ebola, em Uganda e no Congo. Eles deram sua vida amorosamente por amor ao próximo.

O novo critério não agrada a todo mundo. Quando a Igreja canonizou Dom Óscar Romero, vitimado por defender os direitos e a liberdade do povo dominado por um governo ditatorial, houve quem discordasse, alegando que os motivos do assassinato haviam sido de ordem “política”.

Dom Armand Veilleux, da abadia cisterciense de Notre Dame de Scourmont, na diocese de Tornai, Bélgica, observa que, por este prisma, os cristãos não teriam o monopólio do martírio. “Numerosas pessoas de outra fé, ou que nem se consideravam religiosas, morrem a cada dia de morte violenta por terem defendido os mesmos valores que estão no coração da fé cristã.” E cita o exemplo de muitos imãs muçulmanos da Argélia, que foram assassinados por não concordarem com os atos de violência de grupos revolucionários.

Por outro lado, ao longo dos anos, muita gente foi perseguida, torturada ou morta por motivos religiosos quando defendiam doutrinas e comportamentos heréticos. Obviamente não basta o sofrimento e a morte para fazer um mártir. No critério de Santo Agostinho, “causa non poena martyrem facit”: não é o sofrimento que faz o mártir, mas a causa. A simples imprudência não justifica o martírio. No livro dos Atos dos Apóstolos, vemos Paulo fugir da morte (cf. At 9,23-25; 14,6) ou ser desviado pelo Espírito Santo de uma situação de risco (cf. At 16,7).

Há alguns anos, o Santo Padre criou uma comissão no Vaticano encarregada de estabelecer uma lista dos mártires do Séc. XX. Uma das principais celebrações do Jubileu foi consagrada exatamente a estes mártires. Desde então, percebe-se que a Congregação para as Causas dos Santos ampliou o conceito de martírio, até então reservado exclusivamente para aqueles que haviam morrido “in odium fidei”, isto é, em decorrência do ódio contra a fé. Tal definição já não corresponde à nova realidade.

Para Dom Armand Veilleux, “a reflexão sobre as novas formas de martírio conhecidas por nossa época nos leva a uma reflexão ulterior. É que a cada vez que alguém sofre o martírio, outra pessoa comete um crime contra a humanidade, contra a imagem de Deus que existe em toda pessoa humana. E tais crimes não devem ser esquecidos em nossas belas cerimônias em torno da memória dos mártires. Acima de tudo, não devemos dar aos carrascos e torturadores a impressão de que eles podem continuar a agir impunemente”.

Não parece razoável atribuir a motivações “políticas” a morte daqueles que defendem os mais pobres, como fazia a Ir. Dorothy Stang, pois a imensa maioria dos primeiros mártires do cristianismo perdeu a vida exatamente por serem vistos como uma ameaça ao Império Romano e sua religião de Estado. Assassinada aos 73 anos de idade, Ir. Dorothy chegou ao Brasil em 1970 e se dedicou a atividades pastorais na Amazônia. Ela cooperava com a população pobre da região em projetos de reflorestamento e de geração de emprego. Um de seus princípios era a não violência. Acabou atraindo o ódio de fazendeiros da região que se diziam donos das terras que estavam incluídas no projeto.

Já o arcebispo de San Salvador, capital de El Salvador, na América Central, Dom Óscar Romero, foi assassinado friamente enquanto celebrava a missa, em 24 de março de 1980, exatamente por defender os pobres.

“Tenho sido frequentemente ameaçado de morte – dizia ele. Devo dizer-lhes que como cristão não creio na morte sem ressurreição. Se me matam, ressuscitarei no meu povo salvadorenho. Digo isso sem orgulho, com a maior humildade… Como pastor, estou obrigado a dar a vida por quem amo, que são todos os salvadorenhos, como também aqueles que vão me matar. Se chegarem a cumprir as ameaças, desde agora ofereço a Deus meu sangue pela redenção e ressurreição de El Salvador”.

Martírio uma nova realidade1

No dia 14 de outubro de 2018, durante a canonização de vários santos, o Papa Francisco dizia em sua homilia: “É significativo que, juntamente com ele, Paulo VI, e demais santos e santas hodiernos, tenhamos Dom Óscar Romero, que deixou as seguranças do mundo, incluindo a própria incolumidade, para consumir a vida – como pede o Evangelho – junto dos pobres e do seu povo, com o coração fascinado por Jesus e pelos irmãos. … Todos estes Santos, em diferentes contextos, traduziram na vida a Palavra de hoje: sem tibieza, nem cálculos, com o ardor de arriscar e deixar tudo. Irmãos e irmãs, que o Senhor nos ajude a imitar os seus exemplos!”

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