A nova conjuntura social, condicionada pela pandemia do Coronavirus, aparece aqui e ali, no noticiário, com informações sobre o mal-estar do confinamento em família. Jovens irritados com a presença dos irmãos, casos de agressão entre cônjuges e outros sintomas de que a constelação familiar anda com seu brilho ofuscado.
O novo quadro traz à nossa percepção a sensível diferença entre ser familiar e ser íntimo. Quase podemos afirmar que a familiaridade vive de relações epidérmicas que não chegam à intimidade. Aliás, o primeiro sinal de que um casal não anda lá tão íntimo é a separação das camas ou dos quartos.
Confinado às quatro paredes do lar, o marido sente-se roído pela ausência dos companheiros de botequim, onde ele pode falar o que quiser, sabendo que será aceito como um amigo íntimo. A esposa, por seu lado, não vê ambiente em sua casa para trocar as pequenas “intimidades” que as amigas lhe permitem. Ele e ela partilhariam com estranhos os sofrimentos que não se animam a partilhar em família…
Até onde se vê, o ambiente familiar não construiu aquela intimidade que deixe a pessoa à vontade. Existem feridas ocultas, reclamações antigas, decepções veladas que, às vezes, afloram em pequenas ironias e apelidos afiados. Há muitos segredos entre pais e filhos, existem véus que encobrem mágoas e desconfianças.
Por isso a adolescente se agarra ao celular como o náufrago abraça o salva-vidas: ela acredita que as amigas irão aceitá-la como ela é, sem a iminência de críticas, correções e acusações. Não são familiares, mas parecem íntimas.
Pessoalmente, verifiquei este contraste nas numerosas vezes em que um membro de comunidade ou de instituto religioso veio partilhar comigo situações que não ousava partilhar com seu próprio “pessoal”: eram familiares, mas não eram íntimos.
Podemos transpor esse mesmo contraste para nossa vivência religiosa. Entre cristãos, é evidente que a grande maioria dos fiéis se sente “familiar” com Jesus Cristo: conhecem a data de seu aniversário, suas realizações, seus ensinamentos, podem até saber de cor os quatro Evangelhos. Mas é provável que muitos não se sintam íntimos dele…
A intimidade brota da presença, alimenta-se dela, não suporta sua interrupção. Quando a missa dominical parece um preceito, causa tédio e exige esforço, pois entra em competição com outros programas e outros atrativos, deixa transparecer a falta de intimidade. Afinal, a Santa Missa é um encontro não só com a “família” dos cristãos, mas uma experiência de tal intimidade com Jesus Cristo, que ele se dá a nós como alimento.
Isto ajuda a entender certo tipo de teologia e determinados enfoques de estudo bíblico, quando a religião é travestida em puro objeto de estudo – técnico, árido, analítico -, demonstrando que o teólogo ou o exegeta não tem a mínima intimidade com a pessoa daquele que é o centro e a razão da toda a Escritura Sagrada.
Já leram a vida dos santos? Então já sabem o que é intimidade…
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