Dona Maria dava aulas. Viúva, sem diploma de normalista, enchia com sua presença as “Escolas Reunidas de Minduri”.
Em nosso primeiro encontro, eu tinha seis anos incompletos. Em minutos, passei do ABC para a cartilha. E ela viu que meu pai tinha sido um bom alfabetizador. A escola era pobre e não havia livros para um novo aluno da 1ª série. O único manual de leitura que foi possível encontrar na velha estante eram as “Histórias que Mamãe Contava”, de João Kopke, da 3ª série primária. Mas aquela mulher tranquila não fez pouco caso do aprendiz de calças curtas. Seu ato de fé foi o melhor dos estímulos.
Dona Maria foi minha mestra durante três anos. Tudo o que mais tarde me apresentassem com o rótulo de didática “moderna”, tudo aquilo ela já trazia em seu repertório. Ensino individualizado? Dona Maria dava uma aula diferente para cada um de seus moleques empoeirados, sentados nas longas bancadas de madeira. E cada um seguia adiante ou repetia o mesmo ponto conforme o seu interesse ou capacidade.
Monitores? Dona Maria utilizava os mais adiantados, como a prima Nina, para corrigir os cadernos e dar visto nos exercícios. Motivação? Quando alguém quis pôr em ridículo os rabiscos e meandros que eu fazia na margem superior do caderno, Dona Maria acudiu, salvadora: “Ele está desenhando um mapa…”
Da sala ao lado, ouviam-se os gritos estridentes da outra professora. Dona Maria nunca alterava a voz. Para um guri dos mais renitentes, no máximo um olhar severo, por cima dos óculos de grau. Não me lembro de nenhum coque, nenhum beliscão, nenhum murro na mesa, técnicas de dominação que seriam comuns no colégio dos padres… Ah! Os pontapés de botina do Padre Lino!
Dona Maria participava de tudo que nos interessava. Até do futebol. Nosso time era meio improvisado, camisas brancas de uniforme, com gola e botões, e um número costurado nas costas. Tenho na memória uma tarde de sábado, quando goleamos um time de marmanjos e, ainda embriagados pela vitória, subimos numa só carreira o morro da escola até a casa de Dona Maria. Depois de anunciarmos, sem fôlego, a inesperada vitória sobre a 4ª-série, ela foi buscar para cada atleta um caderno “Saturno”. E cada um agarrava o caderno de 20 folhas como se fosse uma medalha olímpica.
Um dia, morreu um colega de sala. Pisou num prego enferrujado de uma caixa de queijo Dana. Veio o tétano e a morte terrível. Era estranho ver chegar para a aula o seu irmão, sem o outro que tinha morrido. O irmão sobrevivente parecia incompleto… No enterro, no velho cemitério à sombra da árvore de óleo, bem que ficamos com vontade de chorar. Mas Dona Maria olhava para a frente, para bem longe, e tinha o rosto firme. Ela estava dizendo, no seu silêncio, que era preciso ter coragem. Que a vida continuava irremediavelmente.
Quando resolveram que eu devia ir para o internato, em Conceição do Rio Verde, foi Dona Maria quem me deu aulas especiais, revendo a Matemática para os exames de admissão ao ginásio. Acho que ela jamais recebeu nada por aquelas aulas particulares. Era o seu jeito de fazer as coisas…
Por esse Brasil afora, quantas donas marias devem trocar os pedacinhos de sua vida pela vida de cada moleque que a Providência divina faz sentar diante de sua mesa! Esquecidas pelo patrão indiferente, nem reclamam dos pagamentos atrasados e insignificantes. Elas trocam sua voz e sua presença por outra espécie de moeda…
Quando Dona Maria chegou ao céu, talvez tenha aproveitado o descanso e a recompensa que Deus reserva para aqueles que vivem o grande mandamento. Ou talvez – quem sabe? – foi logo recebendo de São Pedro um novíssimo Diário de Classe, tendo em primorosa ordem alfabética os nomes aéreos de 50 anjinhos analfabetos…
Comentários
Que riqueza, fiquei absorvida por esta narrativa.❤️ Muito obrigada por compartilhar! 😘