Sim, a morte não ex-iste. Não tem existência por si mesma. Ela não é um ser ou uma pessoa, mas mero fenômeno experimentado pelos seres vivos. Apesar disso, no inconsciente da sociedade, a morte é personificada, revestida de traços antropomórficos e temida como um “ser” real.
Um “causo” mineiro pode servir de exemplo. Se Zé, já velhinho, com um calombo na cacunda, foi ao mato lenhar. Na volta, morro acima, a lombeira doía, quase insuportável. Ele suspirou e disse em voz baixa:
– Ó morte, por que você não vem me buscar?
Alguns metros adiante, embaixo da figueira velha, Seu Zé enxergou um vulto escuro, batina preta, um alfanje na mão. Já tremendo, o vovô foi-se aproximando. Ela, então, perguntou:
– Foi o senhor que me chamou?
E Seu Zé, suando frio:
– Fui eu, sim… A senhora pode me ajudar a carregar esse feixe de lenha?
* * *
No imaginário popular, que a arte romântica adotou sem medidas, a morte existe, é mulher, e vive rondando as pessoas, depois de invadir a cena do teatro, do balé e da literatura. Modernamente, o cineasta Ingmar Bergman dirigiu um famoso filme (O Sétimo Selo, 1956), onde a morte é personificada e joga xadrez com um cavaleiro que usa do jogo para ganhar tempo. Tudo depende da sua vitória no jogo e a Morte concorda com o desafio, pois sabe que não perde nunca. Na verdade, só há um meio de escapar da morte: morrer… Assim ficamos livres dela.
Ora, a morte não é “pessoa”, mas simples “passagem” do tempo para a eternidade. Se alguém é materialista e não crê na existência da alma, então seria a passagem da vida para o nada. Esta ideia de “passagem” é muita viva em grupos cristãos, onde a morte é celebrada como uma “páscoa” (do hebraico pesach, passagem, travessia).
A vida humana se estende do nascimento até a morte física, quando o organismo entra em falência, por doença, velhice ou trauma. Separada do corpo, a alma sai do tempo e penetra na eternidade: ela é imortal, sopro divino desde a criação de Adão.
Para a doutrina católica, “na morte, Deus chama o homem a si. É por isso que o cristão pode sentir, em relação à morte, um desejo semelhante ao de S. Paulo: ‘O meu desejo é partir e ir estar com Cristo’ (Fl 1,23)”. Cristo, na cruz, promete ao ladrão: “Ainda hoje estarás comigo no paraíso” (Lc 23,43). E Santa Teresa de Ávila, ansiosa pelo céu, poetava: “Muero porque no muero”.
Enquanto isso, o povo morre de raiva, morre de medo, morre de vontade de ir à praia. De fato, somos todos mortais…