No debate sobre a legalização do aborto, cala-se sobre o calvário vivido pelas mulheres em busca de paz interior e de um renascimento espiritual.
Em sua edição de 16/12/2016, o jornal “La Croix” publicou matéria assinada por Céline Hoyeau, que recolheu o testemunho de mulheres que abortaram e falam de seu itinerário humano e espiritual que lhes permitiu escapar de sua “prisão interior”. Protegendo a verdadeira identidade das mulheres, todos os nomes abaixo são fictícios.
É o caso de Helena, 46 anos, que jamais imaginou passar por essa experiência. Católica praticante, fez um aborto há dez anos. “Eu passei por noites impossíveis de suportar. Lembro-me da manhã em que, despertada pela angústia, eu rezava: ‘Senhor, eu sei o que vai me acontecer, mas não tenho outra escolha’”. Helena tinha pensado nas consequências, mas via tudo como algo “teórico”, e não imaginava o “cataclismo” – expressão dela – que viria depois, o “completo afundamento”, a sensação de “ter perdido minha pele”. E pensava: “Não sei qual de nós dois é o mais morto, se a criança ou eu”.
Tomar consciência da condição humana
Para Natasha, ficar grávida aos 22 anos, enquanto estudava, era simplesmente inimaginável, ainda que estivesse apaixonada. E “aquilo (o aborto) se fez de maneira muito natural”, a vida retomou seu curso para essa jovem artista criada em uma família judia não crente.
Mas um ano e meio mais tarde, quando uma amiga olhava a foto de seu passaporte no metrô, veio-lhe o pensamento como um murro: “Olha, na época dessa foto eu estava grávida”. Hoje com 43 anos, Natasha conta que mergulhou e uma longa depressão, atormentada por essa “súbita tomada de consciência de sua condição humana”. “Eu não tinha interrompido uma vida, mas as de dezenas, talvez, de centenas de pessoas, crianças, criancinhas…”
Depois da IVG, entre o consolo e a indignidade
IVG – interrupção voluntária da gravidez – é o eufemismo adotado para evitar a palavra “aborto” com sua pesada carga de reprovação social. Para Ana-Laura, 40 anos, casada e mãe de dois filhos, o contragolpe não foi tão brutal. Depois da “ducha fria” da reação de seus pais que, mesmo sendo católicos praticantes, preferiram a escolha do aborto “para protegê-la”, ela reconhece que sentiu um enorme alívio.
Com 20 anos, podia recomeçar a fazer projetos pessoais. Alguns anos depois, porém, durante seu noivado, Ana-Laura foi invadida por um “sentimento de indignidade” que se transformou ao longo dos anos em “ondas de desespero”, realimentadas pela incapacidade de ficar novamente grávida.
Perdão após o aborto?
Como pacificar sua consciência? Que tipo de diálogo realizar com Deus quando a culpabilidade é uma tenaz? Como se perdoar? Durante dez, vinte anos, Helena, Natasha e Ana-Laura se debateram com estas perguntas. Se estas três mulheres não são representativas de todas aquelas que abortaram, todas as três evocam a mesma “descida aos infernos”, misto de uma culpabilidade insustentável e uma imensa solidão.
Pertencendo, ou não, a um ambiente católico, o aborto as condenou ao silêncio e à clandestinidade. Calar-se porque as pessoas à sua volta não compreendem isso. “Minha família me dizia que não era nada grave, minha irmã também, e que ela também abortara”, conta Natasha. “Eu tive a impressão de me encontrar sozinha com minha tristeza e minha raiva. Era impossível falar no assunto, eu seria vista como um monstro, banida por minha família. Mesmo em minha paróquia, eu seria julgada”, confidencia Helena.
Já antes do aborto, Natasha era intrigada com a fé de uma amiga. Acabou aceitando participar de um retiro espiritual, mas o padre que então recebeu suas confidências, entremeadas de soluços, julgou com brutalidade sua suposta leviandade e usou de palavras infelizes. “Apesar de tudo – diz ela – eu permaneci e descobri minha oração. Descobri também que eu não estava sozinha, pois outras mulheres também sofriam com seu aborto há décadas.” E foi na fé católica, afinal, que Natasha encontrou um caminho de sobrevivência, como Helena e Ana-Laura.
O longo caminho de reconciliação
Nada mágico, nem imediato. Não basta um retiro espiritual. Nem mesmo o sacramento da reconciliação. Para cada uma delas, foi necessário um longo itinerário de trabalho interior. “Não está totalmente curado, não estará nunca”, matiza Natasha em conversa com seu psicólogo, vinte anos depois.
Ela, que não teve filhos, está convencida de que a esterilidade “está ligada a este ato”. No entanto, aos seus olhos, aquele aborto faz parte de sua caminhada espiritual: “Foi isso que me levou a encontrar Deus. Sem a fé, uma depressão muito forte se teria instalado. Se não existisse algo mais além de mim e de minha psicologia, a culpa tomaria todo o espaço”.
O sentimento de ser punida por Deus
Libertar-se da culpa não foi simples para Ana-Laura. Durante anos ela se debateu com a ideia de que, se não conseguisse engravidar de novo, seria uma punição da parte de Deus. E foi por meio de seu trabalho com pessoas deficientes, ao lado de seu marido, que ela pôde encontrar “um lugar de consolação”, onde a alegria e a simplicidade dos deficientes “mantiveram sua cabeça fora d’água”.
A chegada de um primeiro filho adotivo não foi suficiente para acalmar seu mal-estar: “havia sempre alguma coisa que prejudicava minha relação com ele”. Foi durante uma Sessão Stabat, encontro de cinco dias animado pela Associação Mãe da Misericórdia, que ela experimentou uma forma de pacificação. “Isto me pôs de novo em ligação com o filho que eu perdi. Eu o integrei à minha vida e à nossa vida de casal.”
Alguém está comigo
Helena recorda uma primeira psicoterapia e, a seguir, um retiro inaciano e um novo encontro de oração, em 2013, quando, após receber a Unção dos Enfermos, sentiu que não estava mais sozinha: “Aquele fardo podia ser carregado juntamente com outras pessoas. Como cientista, eu não sou inclinada a experiências sobrenaturais, mas ao pé da cruz eu experimentei uma suavidade, uma paz, como se Cristo começasse tirar alguma coisa de mim…”
E foi aos poucos, em pequenos toques, ao fim de dez anos de fechamento em sua prisão interior, que sua fé a levou a aprofundar sua história e atravessar com coragem as emoções sufocadas, com a ajuda da Associação Agapa, em 2015. “O acontecimento foi recolocado em seu lugar. É um renascimento, não sei ainda para onde vai, mas tenho a convicção de que Deus me dá esta vida e conta comigo para inventá-la… Como uma página branca onde eu posso escrever de novo.”