Os vândalos foram um povo que habitou a antiga Germania e que no século V invadiram a península itálica e o norte da África. O termo passou a significar segundo o dicionário Houaiss: ‘Estragar ou destruir selvagemente (um bem, uma propriedade, um local). Praticar, frequentemente em bando, atos destrutivos e violentos que resultam em estragos e prejuízos de bens e propriedades.’
Dentro das atuais manifestações de massa, que demandam mudanças sociais como melhorias dos transportes públicos, melhores serviços de saúde e educacionais, existem grupos que se aproveitam do anonimato da multidão para praticarem atos destrutivos, dos quais nada positivo resulta nem resultará. A quase certeza da impunidade, ou pelo menos o manto protetor da multidão possibilita a certos indivíduos exercer o prazer, mórbido e antisocial, que nasce do ódio e da frustração, que é destruir, queimar, saquear.
Partindo da justa demanda por uma ordem social mais eficiente e que atenda às necessidades da maioria da população menos favorecida pelos recursos econômicos, estes indivíduos se aproveitam da máscara de uma demanda nobre e verdadeira para se sentirem, por momentos, fortes, indomáveis, justiceiros e poderosos. É o seu momento de glória. Mascarados com frequência, podem ter, se tiveram sorte, o secreto prazer de se verem filmados e divulgados no noticiário da TV ou imortalizados em fotografias. Ninguém saberá quem são, mas eles próprios sabem. Talvez recortarão a foto na qual aparecem para guardarem de lembrança do dia em que foram famosos, contemplados e temidos por milhões de pessoas.
É fácil compreender que é muito mais fácil destruir do que construir, roubar e saquear, do que gerar os meios para a aquisição dos bens de consumo. É mais fácil a glória de ser um terrorista, um estuprador, um criminoso, do que a glória de ser um benfeitor aclamado nos meios de comunicação, ou mesmo alguém famoso por sua beleza, talentos e realizações.
Além disto existe um prazer singular em fazer parte de um movimento coletivo, fazer parte de um grupo. Facilmente podemos observar certas pessoas, que, quando estão sós, são tímidas e bem comportadas, em grupo, entre seus iguais, são desinibidas, atrevidas, ousadas. O grupo expande o sentimento do eu, da individualidade. Eu me torno uma parte de algo maior e as realizações deste grupo passam a ser as minhas. Se o meu time vence, fui eu quem venci. Se a minha religião tem milhões de adeptos é a prova de que eu estou certo. Se eu não consigo me sentir valioso, reconhecido, aclamado ou mesmo temido, admirado, respeitado, como indivíduo, fazendo parte de um grupo posso conseguir o que desejo. O que não posso sozinho, juntos conseguiremos.
A polícia pode prender um grupo de 10 bandidos,ou arruaceiros ou manifestantes. São fáceis de cercar, pegar, encarcerar. Mas como fazer isto com 10 mil? Existe aí também, no “vândalo”, a alegria de ver a impotência da polícia. De certa forma a multidão protege esses grupos que extravasam um sentimento de vingança, a glória e o prazer da transgressão pública e ao mesmo tempo quase inacessíveis à punição.
Existe um prazer na raiva que se manifesta em atos. Aquele que grita, quebra, incendeia, mata, estupra, ofende ou apenas expressa o que sente, acusa o outro por tudo o que ele fez de mau e injusto, tem o prazer da autoexpressão, de tentar se impor, de conseguir se expandir. A raiva pode ser justa ou absurda, os meios de realizá-la podem ser corretos ou cruéis, mas ela busca o prazer da autoexpressão. Quando isto é feito em grupo, este prazer se alarga e fica imenso, quanto maior o grupo for.
Todos nós conhecemos o prazer da autoexpressão. Todos nós, quando frustrados, às vezes descarregamos a raiva por caminhos destrutivos ou injustos, seja quebrando objetos, seja ofendendo desproporcionalmente quem nos ofendeu ou mesmo descarregando nossas frustrações em pessoas completamente inocentes. Não é difícil perceber nossa humanidade mesmo nos atos de “vandalismo”.
Existem indivíduos ou grupos dentro da sociedade que realizam em atos, aquilo que a maioria de nós vive apenas em desejos e sentimentos, ou em pequenos atos destrutivos de pouco alcance. A sombra humana, da qual todos somos sócios, em maior ou menor grau, tem expressão plena em certos indivíduos ou grupos. Nos grandes movimentos de massa, como nas manifestações com milhares de pessoas, nas revoluções, nas guerras, a baixa possibilidade de punição desinibe os impulsos que estavam latentes como desejo, mas guardados pelo medo.
Somos responsáveis por todos os nossos atos. Nenhum passado de sofrimento, nenhuma injustiça contra nós cometida, nenhuma frustração dolorosa por causa de nossas limitações e incapacidades nos autoriza a destruir seres vivos, pessoas, ou causar prejuízo a pessoas inocentes, que não fazem parte de nossa história. Cada um de nós, responde ou responderá, mais cedo ou mais tarde, diante de si mesmo ou de outrem, por tudo o que realizou em sua vida.
Podemos buscar caminhos de realização construtivos que nos façam viver o prazer da autoexpressão, o prazer de ser parte de um grupo, a alegria de ser reconhecido e valorizado.
Termino citando aqui o final de meu artigo nesse mesmo site:
Depressão e delinquência
‘Há vida em nós. Algo em nós quer viver, enamorar-se da vida. O prazer da destruição é um prazer menor, um prazer amargo. Prêmio de consolação para quem se sente fracassado, sem forcas para prosseguir, construir, realizar. No fundo de nós há amor pela vida. Alegria. Por trás da autopiedade, da destrutividade, do sentimento de inferioridade ou de arrogância, há algo intacto, límpido. Isto pode ser descoberto. Construir dá prazer. Sentir-se capaz alegra. Transcender um passado amargo, lavar-se dele, nos dá um sentimento de purificação, de entusiasmo, de pureza. Desfazer-se do ódio, da tristeza, do ressentimento, da desesperança é possível. É gostoso. Dá uma sensação de liberdade, como alguém que se livra de uma roupa muito apertada.’
Belo Horizonte, 1º.07.2013