É de manhã. Acabo de me levantar. Abro a janela. Respiro fundo. Contemplo a Serra do Curral. Ou o que sobrou da Serra. Falo aos meus amores distantes, para que a brisa leve até eles a minha mensagem de paz e esperança.
“Neblina na serra, chuva na terra.” Que bom! A chuva vem lavar a cidade. Salvar a plantação. Mas o sol não veio. Há dias não aparece. E a chuva chove saudade dentro de mim. Saudade de quem? De todos, uai! E de tudo. Você nunca sentiu uma saudade assim? Uma saudade vaga, indefinida, indefinível? Uma saudade roxa, uma saudade azul, uma saudade cor-de-rosa? Uma saudade que dói, coça, morde, faz cócegas, sei lá!? Uma saudade que vem de longe. Da infância? De outras vidas(?) E penetra fundo.
Ai! Saudade dos meus amores tão próximos. E tão distantes! Saudade dos meus amores distantes. E tão próximos! Saudade de Paris, que só conheço em sonho. Saudade do Sena que chante, chante, chante… le jour et la nuit. Saudade de Napoleão Bonaparte!
Loucura?! Não! Ternura. Eu não estou com saudade do grande Imperador que você conhece, vitorioso em tantas batalhas, derrotado em Waterloo, exilado em Santa Helena. Não. Eu estou com saudade é do rapazinho franzino que se esconde no jardim; aposta corrida com a filha do negociante de seda de Marsella e atrasa o passo, só para ver nos olhos da amada o brilho da vitória. Saudade do Napoleão da Désirée, deslumbrado com as cores do azul. Saudade do homem apaixonado, vulnerável e frágil dentro do bravo Imperador. Saudade do Napoleão que, após transpor vitorioso e aclamado o Arco do Triunfo sob o repicar festivo dos sinos, foge da multidão, foge dos soldados, foge do Imperador, cansado de tantas batalhas. E vai bater à porta da mulher amada numa madrugada chuventa e fria. Vontade de ficar… de se aquecer no seu regaço… Mas a Imperatriz o espera, o Palácio o espera, o Povo o espera, a Pátria o chama.
Saudade do Napoleão que não se rende ante a espada e os canhões inimigos. E se rende ante um raminho de violeta preso ao decote azul de uma mulher única.
Saudade do Poeta que, cheio de sol, ficou esperando a amada que não veio naquela manhã chuvosa.
Saudade da minha filhinha que, num dia assim, de chuva assim, dormiu seu soninho eterno de paz e foi levada na sua caixinha de boneca. Saudade do Doutor Gotardo. Tão jovem e já tão derrotado: “A senhora entregou a sua filha pra mim. Eu tinha que devolvê-la sã e salva. E não consegui nem fazê-la amanhecer. Sequer consegui o diagnóstico. Nunca me senti tão impotente! De que vale a Ciência? Vou pra casa. Estou exausto! Doutora Fátima continua o meu plantão. Já recomendei para cuidarem de tudo pra senhora. Direitinho.” Fala cabisbaixo o berçarista escolhido para assistir a minha filha no seu curto espaço entre a vida e a morte. Os olhos azuis brilhando menos sem coragem de se levantar e fitar a tempestade nos meus.
A ciência é dos homens, Doutor Gotardo. O mistério a Deus pertence. Teria eu dito para consolar o jovem médico, se o pranto não me embargara a voz.
O sol hoje não veio. E choveu saudade dentro de mim.