A Folia de Reis em minha memória

Publicado por Sebastião Verly 6 de janeiro de 2021

Na nossa pequena cidade de Pompéu, quando eu era criança, lá pelos idos de 1950, no período de 24 de dezembro, véspera de Natal, até o dia 6 de janeiro ou Dia de Reis, sempre se organizava um grupo de foliões, cantadores e instrumentistas que percorriam, de ponta a ponta a cidade, em longas caminhadas. Entoavam ou desentoavam, às vezes, versos relativos à visita dos Reis Magos ao Menino Jesus. Ela apresenta um caráter profano-religioso, fazendo parte do ciclo de festas de Natal e Ano Novo.

A representação dos Reis Magos, ainda que eu não os distinguisse ali na hora, trazia em minha mente a presença, nítida até hoje, do Presépio armado dentro da igreja e nas casas de muitas famílias, onde lá estavam as representativas estatuetas dos sisudos Reis, sob uma estrela de papel salpicada de purpurina prateada.

As lendas eram muitas. Dizia-se que o lider ou “tirador” da folia não poderia parar, a menos que um herdeiro seu, filho, genro, irmão prroseguisse com a missão. Se rompesse a tradição, o tirador morreria, no ano seguinte. E citavam um chamado Cirino mais dois ou três exemplos que morreu por ter abandonado a tradição. Havia a certeza de que quem “tirasse” folia um ano se comprometia a continuar por sete anos seguidos.

Outra tradição era a de que quem não desse a esmola para a Folia de Reis, acabava tendo uma grande perda de bens no ano seguinte. Em casa, minha mãe e meus irmãos mais velhos contavam, assim como quem não quer nada, essas ameaças e justificavam o exercício daquela festa “religiosa” e nossa obrigação de receber bem a folia e dar alguma esmola ou presentinho.

O Zé Barba, que ainda deve estar vivo, era um bom tirador de folia. Sua casa ficava na parte alta da periferia chamada Vargem do Boi e dali partia aquela turma animada. A maioria dos componentes era gente desconhecida. O “tirador” da folia arrebanhava gente simples, alguns desocupados, outros trabalhadores avulsos, como Vital Batata, malandro que ele só, todos muito interessados em dividir o “adjutório” ou esmolas que recebiam pelas apresentações, além de comer e beber de graça durante aqueles dias.

Depois de orientações do chefe, um pequeno ensaio especialmente para as entradas e falas na hora certa, saiam cedo, e começavam pelas casas mais próximas. A folia prosseguia pela noite adentro em longas caminhadas, levando à frente, a “bandeira”, estandarte enfeitado com motivos religiosos bem simples e coloridos, que para os responsáveis deveria merecer especial respeito. A bandeira traz em si os seus signos e significados e é símbolo maior da folia.

Passavam de porta em porta em busca de oferendas, que variavam de um prato de comida a uma simples xícara de café. Uma cachacinha poderia ser discretamente servida. A maioria das familias, quando recebia a Folia de Reis em sua casa oferecia coisas de comer ali na hora – bolos, doces e até algum salgadinho – e, mais raro, presentes como frangos, linguiça, até ovos, alguma fruta ou um pouco de cereais colocados num saquinho de papel.

Quando chegavam à porta da casa, começavam a cantoria. As letras das músicas apelavam para o “bom coração” para o sentido religioso e havia sempre um auxiliar, trajado de palhaço, também com máscara ou cara pintada para arrecadar os donativos. Apesar da adaptação ao tipo cultural e meio de onde vinham os foliões e onde era tirada a folia, os versos e até o ritmo e a melodia varavam gerações e guardavam o mesmo sentido.

Em anos de mais fartura era possivel contar com todos ou quase todos os instrumentos para uma boa folia, que a rigor deveriam constar de viola, violão, sanfona, reco-reco, chocalho, cavaquinho, triângulo, pandeiro. Improvisavam-se um pão com tampinhas de garrafas pregadas ou um arame onde se enfiavam as mesmas tampinhas. Faziam danças que simulavam lutas entre si, com batidas secas dos paus que se cruzavam e provacam um som marcante.

Havia, quando o terreno da casa ou fora dela houvesse cimento ou grama, uma dança que eles chamavam de lundu em que um ou dois dos participantes rolavam no chão e se levantavam em saltos ágeis e ligeiros, quase artisticos. Curioso e, naquele tempo parecia bem normal, quase todos dançavam descalços e houve até um foliãio que vi calçado de sandália de couro cru, que nunca me saiu da memória. As roupas eram coloridas, havia calças e camisas de cetim que contrastavam geralmente com a pobreza e mesmo com a pele negra da maioria dos foliões.

Para a maioria das pessoas visitadas, eram todos foliões, apenas. Não havia a preocupação de identificar os personagens. O único que diferenciava era o tirador da folia que como me lembrei do Zé Barba, que tocava uma sanfona, já nos últimos anos, apareceu com um acordeon bem simples de madrepérola vermelha desbotado. O que nos interessava era a farra, a cantoria, as danças e os meneios.

Tempo bom. A folia “sabia reconhecer o seu público” e mantinha-se dentro de seus limites territoriais e sociais. Apesar de minha família viver no meio pobre, era respeitada cultural e  intelectualmente. Em bom latim, Sapientia longe preestat divitiis, acaba-se o haver mas fica o saber. Com entusiasmo e alegria, meu pai mandava convidá-los a vir até a nossa casa e a se apresentar no terreiro calçado de tijolos que havia junto da varanda ou dentro da sala quando estava chovendo. Todos nós gostávamos de ouvir a cantoria.

E depois que passava a folia, eu e meus irmãos nos juntávamos a alguns meninos da vizinhança e fazíamos nossas máscaras e nossos instrumentos. Ainda me lembro de um ruivinho chamado Zé Lúcio que tinha uma grande destreza para dançar e bater com os cabos de vassouras que usávamos como instrumentos das lutas. Umas poucas vezes, arriscamos a nos apresentar em algumas casas de vizinhos amigos. E ganhamos uns poucos trocados e algo para comer. Apesar da racionalidade pela vida afora, o que ficou na minha memória foi a rara beleza dessa festa.

Além disso, relembro e até canto sem perceber alguns versos que me parecem ainda preservados de geração em geração por tradição oral. (“santos reis vem visitar, quem é de bom coração, Deus lhe dê eterna glória, na sua feliz mansão”)

A Folia de Reis, ainda hoje mantém-se viva nas manifestações folclóricas de muitas regiões do país, especialmente nas cidades mineiras da Região de Bocaiuva.

No município de Muqui, estado do Espírito Santo, acontece desde 1950 o maior encontro nacional de Folia de Reis, reunindo quase uma centena grupos de foliões também dos estados vizinhos do Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo. Ficam os versos:

“Senhora dona da casa, vai chegando a folia
Vem beijar a nossa bandeira e escutar a cantoria
Vem beijar a nossa bandeira e escutar a cantoria, ai ai ai !

Senhora dona da casa, se não for muito custoso
Vem abrir a sua porta que nós viemos de pouso
Vem abrir a sua porta que nós viemos de pouso ai ai ai !

Nosso corpo quer descanso nós precisamos dum canto
Nossa arma quem vigia é o divino Espírito Santo
Nossa arma quem vigia é o divino Espírito Santo ai ai ai !

Senhora dona da casa, a folia vai saindo
Fica com Deus nosso pai e a proteção do divino
Fica com Deus nosso pai e a proteção do divino ai ai ai!”

Comentários
  • alba dutra 1377 dias atrás

    Muito bom Sebastião Verly. Adorei as lendas em torno da continuidade da tradição! 🙂

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